Livrarias de rua

“A livraria ideal, na verdade, não tem livros. É impossível fugir ao paradoxo pouco interessante, mas a livraria ideal é realmente a livraria que acabou. Isto porque os livros só estão nas estantes porque ainda ninguém os quis. A livraria não é, como a biblioteca, um depósito com aspirações à engorda perpétua. O ideal da livraria é a circulação, o permanente desaparecimento dos livros que vegetam como órfãos nas suas estantes.”

– Carlos Maria Bobone, in A Religião dos Livros

A consciência de algo raro oferece a coisas que considerávamos banais, uma relevância singular, como os milhões de uma joia aos quais acrescentamos o valor sentimental de tudo e todos que ela evoca.

Talvez as livrarias tradicionais nunca tenham sido banais na minha vida, pelo menos desde que me lembro de pensar, exercer a vontade e descobrir os gostos naturais, matéria onde os livros ocupam um lugar de destaque. No entanto, tendo estas décadas coincidido com o fecho progressivo, acelerado, e até criminoso, das livrarias de rua, dói assistir em tempo real à extinção de uma espécie, uma espécie de vida que não encontramos nas livrarias dos espaços comerciais, contra as quais se torna difícil contrapor um preço sem os 10%, 20% ou 50% de desconto.

Uma livraria é um espaço sem o brilho postiço das luzes ou a poluição sonora ambiente, onde é permitido comungar de um certo sentimento de pertença, tudo isto sem cair no saudosismo ou numa recusa anémica de aceitar a evolução das sociedades e com ela, a das livrarias de rua.

A emoção de entrar num recinto de cariz quase sagrado, repleto de vidas que folheiam livros e mergulhar numa profunda meditação. Quantas pessoas são apenas elas e quantas é que se desdobram? Supera todos os contos e as sabedorias impressas. Não restam dúvidas sobre este tempo, sem tempo de se desleixar, que envolve a cúpula da sapiência.

Montras despojadas, mas que sabem conversar e convidam os transeuntes, incautos e naïfs, que se deixam enrolar nas malhas da sedução. Sem resistência, a entrada é feita através do canto da sereia que leva à intimidade de vidas perfeitas e desenhadas a teclado.

O toque, cheio de sensualidade, das capas dos livros, tesouros ignotos e bem resguardados, é um manancial de prazeres em que a mente, em profundo estado de excitação, se aventura. Rubis ou esmeraldas, pouco importa, desde que o êxtase seja atingido.

Nesse frémito que nos entusiasma de cada vez que percorremos aqueles espaços, alguns deles herdeiros de outros tempos com aroma a papel velho e madeira que range, apetece comprar todas as obras expostas, apetece ler todas elas naquele instante cósmico… fazer planos para um futuro impossível que atrasa a velhice e prolonga a frescura do espírito. A lógica esconde-se e acreditamos mesmo que a vida estica para o infinito, e vemo-nos a ler centenas ou milhares daquelas obras.

Mais do que projectos futuros de viagens, de estudos, de famílias ou de promoção da forma física, são os livros por ler, imensos para encaixar no curto pedaço de vida tão terreno, quem alimenta a juventude que acreditamos ser eterna só para caber mais um livro lido nesta vida tão ingrata.

A geografia do ser implica percorrer montes e vales, que redundam em paisagens interiores e manjares de sabores que se entranham e nunca se estranham. Ler é uma essência que pode ter paladar de baunilha ou de chocolate ou suscitar, apenas, uma mera ideia do que possa vir a ser. A viagem é longa e nunca está terminada.

Por cada apeadeiro onde se para para respirar, há outro que acena com brevidade e um feitiço que enevoa a mente. Quem escreve é alguém que se desdobra, que tem mensagens infinitas e assaz misteriosas. Um livro é somente o pensamento que se coloca em papel e que permite a tal viagem que não tem milhas ou quilómetros, mas sim momentos que se congelam na mente.

Tantos livros que são escritos e tão pouco tempo que se vive. A vida de hoje, a eterna correria que faz esquecer o essencial, viver com olhos de ser, com espaços para planos de famílias de um dia futuro, é cruel e despoja as pessoas de sentimentos verdadeiros. Evita-se para não sofrer. Um livro oferece, suavemente, os dois lados da emoção, o prazer e a dor, o epicurismo e o estoicismo literários.

A juventude e a velhice, o entusiasmo pueril e empolgante consegue, de forma quase mágica, dar mãos a uma velhice, reformada ou ainda activa, que se coaduna com o prazer de juntar letras, palavras e imensos pensamentos, em corpóreos físicos, cujos livros são os suportes básicos.

Uma livraria de rua é um lugar onírico, uma porta para um túnel do tempo, essa contagem estranha e bacoca que nos empurra para cada dia que se deseja e chega. Entrar numa destas casas é ligar todos os sentidos em alta voz e desfrutar. O cheiro dos livros, que leva a fechar os olhos e entrar neles, descobertos por acaso, têm carisma que dinheiro algum consegue igualar.

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