Escrever: ser e não estar

É frequente questionar-me, enquanto jovem escritor, aquando de uma solidão construtiva mais reconfortante, o que leva alguém a escrever. O que faz um intelectual, ou simplesmente um sonhador, a pôr ideias no papel? Delírios. Fragmentos (do eu). O que nos leva a contar a nossa verdade? Será uma mera perspectiva de um conforto a curto prazo? Será que escrevemos para nos sentirmos melhor connosco mesmos, ou não passa tudo de uma necessidade mais intelectual, do que propriamente emocional? Escrevemos, portanto, motivados pela (in)consciência da razão, ou pela irracionalidade da emoção? Ou os dois?

Felizmente, essa multiplicidade de opções, de (im)possibilidades, faz com que o pré-escrever seja um processo muito menos doloroso e incerto (ou obscuro). E nesta problemática, há sempre duas ideias – necessariamente contrárias – que saltam à vista. Contudo, antes de as enunciar, importa frisar que Miguel Esteves Cardoso, o célebre escritor e cronista português, deu recentemente uma entrevista ao jornal Público, em que, falando (obviamente) de si, toca nesta questão. Posteriormente e com grande audácia e instinto de oportunidade, Henrique Pinto Mesquita, cronista do mesmo jornal, pegou nas palavras de Miguel Esteves Cardoso e fez um ensaio sobre a escrita (em particular) – e a arte em geral. E para isso, dá o mote, questionando: “a arte – ou seja, a escrita – não tem de ser espontânea e selvagem? Afinal, o que se espera de um escritor? A arte selvagem e crua ou o texto padrão de fábrica diário”?

A dualidade aqui presente é uma: devemos escrever por inspiração, ou por disciplina? Talvez a real sabedoria esteja num meio-termo, numa escolha cuidada e equilibrada das duas vertentes. Talvez, mais disciplina nos momentos em que a inspiração falha, e mais inspiração quando a disciplina se nos sobrecarrega. É preciso parar e pensar. Parar sobre o mundo – sobre a vida. Só daí advém a fonte do delírio criativo.

Miguel Esteves Cardoso, no esplendor da entrevista, explica-nos que um escritor também precisa de solidão. Solidão para observar. Solidão para ter de se distrair de estar sozinho. Solidão para encontrar, nas entrelinhas, a magia que se nos escapa na azáfama do dia-a-dia, na intranquilidade e consciência da efemeridade de tudo, no dito “estar e não ser”.

Primeiro, é preciso encontrar uma paz interior para sonhar acordado, e só depois partir para a “concretização da alma”. Para escrever, é preciso subjugar o coração a uma audácia capaz de furar todas as dualidades incontornáveis da vida, da existência, do Eu. Ou agarramos aquilo que nos move, ou então decaímos, e submergimos num abismo intelectual, humano, físico desmedido de nós próprios em relação (ao nosso) mundo. A esse respeito, Miguel Esteves Cardoso é peremptório: “nesta fase, o proto-escritor observa e absorve com o coração esponjoso a existência humana como espécie — tal como um espectador num teatro. Depois intelectualiza.

É, precisamente, esse o caminho. Encontrar, numa profunda absorção do eu – e da sua matéria inverosímil –, tudo o que precisa para crescer, para ser, para sonhar. Como? Através da aceitação humana da sua autenticidade. A todos os níveis. Só possível através do chamado maestro oculto: o coração (da alma) que nos guia rumo ao infinito de nós.

Para viajares rumo à descoberta de ti, basta começares a sonhar. Depois disso, encontra em ti toda a bagagem do (teu) universo de intelectualidade. E, porventura, após esse “reencontro”, sintas toda a Arte que sempre existiu em ti. É a partir de ti – e para o outro (eu) – que o paraíso infinito da escrita começa e acaba.

Sente o delírio… E não tenhas medo – de sonhar.

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