Um Pouco Mais de Azul

Que sentido se deve dar às palavras «transparência do universo»? (…) O universo é transparente em direcção ao futuro.

A história da minha relação com este livro vem de longe, do tempo do Liceu de São João, mais concretamente do 10º ano, mas vou começar pelo esvaziamento da minha casa, no final de 2021, um ano depois de estar a viver com a Sofia. Esvaziar uma casa é tarefa dura; esvaziar uma casa com livros requer força de braços, daquela força de que nos esquecemos por não estarmos a falar de móveis de nogueira, maciços, ou de arcas frigoríficas horizontais. 

Um livro é coisa leve. Dez livros fazem doer os braços. Aproveitei a mudança para me desfazer dos livros que já não interessavam, com foco nas enciclopédias, espiritualidades e um ou outro romance. Quando fomos com os sacos reutilizáveis do supermercado pejados de livros até à Biblioteca de São Domingos de Rana depositar a cultura no templo sagrado, senti-me como se me tivesse libertado de seis ou sete sacas de betão, mas armado.

Por curiosidade, fui espreitar o cantinho das trocas, onde antes havia efectuado alguns “negócios” altamente proveitosos (tinha trazido A Morte de um Apicultor deixando lá Anjos e Demónios; ou ficado com Trinta Anos por troca com Mourinho – Eu Sou Especial), e vi uma pérola da maravilhosa colecção Ciência Aberta, da Gradiva, Um Pouco Mais de Azul, do cientista canadiano Hurbert Reeves. Voltei ao saco, tirei um livro qualquer e fui depositá-lo na estante das trocas para trazer comigo um desejo antigo.

Foi nas aulas de Ciências da Terra e da Vida, com o professor Rui Farinha, que a colecção Ciência Aberta entrou definitivamente na minha vida (numa aula, ele mostrou-nos o Calendário Cósmico, de Carl Sagan, que apareceu pela primeira vez n’O Cosmos, e a que o autor norte-americano tornaria mais tarde, em Os Dragões do Éden, livro que li pouco depois de terminar o 10.º ano). 

O stôr trazia o entusiasmo das crianças pelo desconhecido – tinha 23 anos – sempre que falava da investigação científica, da colecção Ciência Aberta, e do fantástico “senhor de grandes barbas” que havia escrito Um Pouco Mais Azul. De cada vez que eu ia ao Continente passar horas em frente aos livros e aos filmes, Um Pouco Mais de Azul e o barbudo da contra-capa riam-se para mim, mas havia que fazer escolhas, e o livro foi permanecendo em órbita, como a Lua em volta da Terra, umas vezes visível, outras nem tanto, mas sabendo estar sempre lá para quando a oportunidade, a vontade e os astros se alinhassem. Foi preciso mudar de casa.

E foi preciso Hurbert Reeves morrer, aos 90 anos, para reacender aquele desejo antigo, a centelha de fascínio pela divulgação científica, o entusiasmo pelo desconhecido que me acompanhou nos anos de faculdade onde A Breve História do Tempo, O Homem que Só Gostava de Números, A Experiência Matemática ou E = C2: A Biografia da Equação Mais Famosa do Mundo me abriram as portas da Ciência, da sua história, dona de uma beleza ímpar, e do seu método, de longe o mais testável, humilde, fascinante e bonito modo de conhecimento com que me deparei (talvez a par da Psicologia e da Filosofia).

Neste caso impõem-se a prudência. Tais observações e especulações derivam de estudos muito recentes. A crítica dos profissionais elimina regularmente uma boa parte das novas teorias. É sempre prudente esperar algum tempo antes de adoptar uma tese audaciosa. Irá, então, esta teoria durar por muito tempo? Um caso a ver…

O título, Um Pouco Mais de Azul, vem de um poema de Mário de Sá Carneiro, como o nome original do livro – Patience Dans l’Azur – é um verso de um poema de Paul Valéry. E o universo é um mistério dono de uma beleza digna da mais fina poesia. Chega a assustar (e por isso, muitas vezes afasto o pensamento dessas questões, o confronto com os limites do entendimento. Olhar para o céu, pensar o Cosmos, são veículos perfeitos para nos levarem de mão dada pela fronteira das noções de espaço e de tempo, questionando de onde viemos? O que se encontra para lá?… tudo isso esbarra na nossa incapacidade de equacionar algo além do “nosso” tempo e do “nosso” espaço, conceitos concretos, limitados, começados e acabados, fechados por dois eixos de intervalos.

Mal iniciei a leitura, soube que iria ser especial.

Estenda-se no solo, de noite, longe das luzes. Feche os olhos. Depois de alguns minutos, abra-os e repare nas estrelas. Terá uma vertigem. Colado à superfície do espaço, sentir-se-á no espaço. Saboreie por muito tempo esse encanto.

Escrito em 1981 (é o segundo título da colecção), o livro lê-se hoje com igual agrado e entusiasmo, como uma criança, ainda que as explicações que propõe para o funcionamento do Cosmos possam estar ultrapassadas; ao mesmo tempo, impõe-se como uma notável ferramenta contra o negacionismo e a ignorância, através de um dos métodos mais bonitos de alargar conhecimento que o ser humano foi capaz criar.

A divulgação científica é uma área fascinante, ao mesmo tempo que nos mune de ferramentas contra a ignorância e a estupidez. Hoje (não sei se mais do que nunca, pois houve a Inquisição, mas em larga medida), necessitamos de divulgar o método científico, dada a forma como o poderoso aliado da alienação de todas as evidências – as redes sociais – pôs a nu (ou nos fez?) a nossa infantilidade, egocentrismo, sede de palco e de bajulação, a nossa ignorância e estupidez, maiores do que supúnhamos (ou do que eu supunha) no tempo em que os jornais, a televisão e a arte eram as formas de conhecermos outras culturas.

É a curiosidade que alimenta a Ciência, e tantas são as vezes, que as dúvidas mais simples nos conduzem (ou conduzem o investigador) às buscas mais fascinantes e respostas surpreendentes, levantando posteriormente um sem número de novas questões deslumbrantes. Esta simplicidade na formulação e dificuldade de resolução encontra-se também na Filosofia ou na Matemática: em O Mundo de Sofia, as primeiras perguntas que a jovem Sofia recebe pelo correio – Quem és tu? e De onde é que o Mundo vem? – são de uma simplicidade aterradora e ainda hoje ninguém é capaz de jurar ter encontrado as respostas; ou na Teoria de Números, afirmar que qualquer número par pode ser escrito como a soma de dois números primos (a famosa conjectura de Goldbach) é perceptível a qualquer pessoa que tenha completado o ensino básico, mas continua hoje a ser uma conjectura e não um teorema (isto é, continua por demonstrar).

Mas, falando do universo, não se pode dizer que ele «ocupa» o espaço e que ele «se insere» no tempo. Da mesma maneira que a matéria, estas dimensões é que estão incluídas no universo. Pareceria mais apropriado dizer que o universo cria ele mesmo o espaço e o tempo no qual ele se estende e perdura. Mas, confessêmo-lo, neste ponto estamos no limite da compreensão do real.

É este entusiasmo pelas perguntas simples que Hurbert Reeves transmite com este livro, ao contar a história do Universo (a teoria, baseado no que era conhecido em 1981), passando por perguntas que provavelmente alguns de nós, em criança, fizemos (ou poderíamos ter feito), como por exemplo, se o céu se encontra todo preenchido por estrelas, porque é que, ao olharmos para o firmamento, não vemos todo o espaço iluminado, mas apenas minúsculos pontos brilhantes? Ou por que razão existe qualquer coisa em vez de nada existir?

Ainda que seja mais fácil de entender para quem tem um mínimo de formação científica, a linguagem e a matéria do livro são perfeitamente acessíveis a todo o público. Afinal, ele versa sobre algo que diz respeito a todos. Mais universal é impossível.

Texto escrito segundo o antigo acordo ortográfico

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