Folhas de árvores vermelhas e passos rápidos na calçada. O vento forte. Os cabelos a taparem-me os sentidos. Nestes dias revoltados, lembro-me sempre de ti. Sou ridículo: penso que és o meu Outono. Tu és o dia que nunca mais avançou. Para nenhum de nós, penso eu – embora nunca tenhamos falado disso. Falar para quê? Arrancar as crostas da solidão, se nada vai mudar? Estamos juntos mas as nossas energias já não se conseguem tocar. Cada um de nós ficou preso no mesmo dia a uma memória diferente. Uma prisão solitária e individual, contigo em repeat. Já só temos isso em comum. Um nome e um dia.
Lembro-me que havia sombras no tecto e eu sabia que havia algo de errado. Estava sentado no chão, enrolado por uma manta, com o coração tão pesado que pensei que fosse rebentar. Ouvia as folhas a caírem com a força do vento, os ramos a baterem nos vidros. Mordia as bochechas nervoso, sem conseguir controlar esse pensamento: há algo de errado. Adormeci com a exaustão do medo, e nunca soube se vieste ver-me. Sei quando foi a última vez que te vi, mas não sei quando foi a última vez que tu me viste, e o fantasma de eu não te ter retribuído o último olhar pesa-me no peito. As perguntas sem resposta são torturas que nos corroem. Falta de ar nos pulmões. “Qual é a sua resposta final?”, perguntam nos concursos. Penso sempre no mesmo: “sem resposta. Sem resposta há anos.”
Talvez tenhas vindo e eu não tenha sabido guardar essa lembrança. Perdida para sempre. Uma garrafa num oceano. Ou um papel num oceano, sem garrafa, tão completamente desfeito que não se distingue. Irrecuperável.
Talvez não tenhas vindo. Talvez nunca mais te tenha visto desde o jantar. Repito tantas vezes essa reminiscência, essa última reminiscência, essa nossa última ceia. Tantas vezes que duvido que ainda sejam reais. Tantas vezes que já só são desejos inventados, quereres que tive de construir para não enlouquecer com a tua ausência.
Ou se calhar é tudo mentira. Talvez seja tudo mentira, consigo admitir nestes dias de vento intenso em que os pensamentos conseguem ser livres. A minha certeza pode ser só uma ilusão. As minhas lembranças podem estar todas ao contrário. Se calhar, naquela noite, não sentia nada de errado. Se calhar sempre fui ansioso e aquela era mais uma noite igual a tantas anteriores. Se calhar os jantares de que lembro são os que vejo nas fotografias – muitos anos antes, muitas recordações antes da recordação daquela noite. Se calhar não me lembro mais de ti, de ti verdadeiramente, e apenas se tenha mantido intacta a ideia de ti. As fotos de ti. As histórias sobre ti. O que todos queremos guardar de ti, somente o que queremos guardar – tão diferente para cada um de nós, e que não deve ser nem metade de tudo aquilo que eras.
São muitos talvezes que vão desaparecer depois do vento. São talvezes dos quais me vou resguardar todos os dias, todos os Outonos, toda a vida. Hoje conseguem voar selvagens com o temporal, bruxas no Halloween, mas eu sei que depois vou ter de guardá-los todos bem fundo de mim, longe da possibilidade de surgirem a seu bel-prazer só para me atormentar. Fechá-los à chave bem fundo – bem no centro de quem sou. Mas neste momento quase que consigo admitir que a única certeza absoluta que alguma vez vou ter é saber a idade que tinha nesse dia. Disso não há dúvidas: tinha sete anos e meio. Na verdade – naquela que me é impossível admitir – pode ser só isso que me resta: apenas ficaram a idade, o ano, o dia. Apenas isso para todos, cada um preso na sua cela solitária até tu voltares. Apenas isso resta. Porque tu, minha irmã, desapareceste para sempre como num feitiço de terror.