Não me recordo como o conheci. As hipóteses são várias e todas plausíveis. Talvez tenha sido na Feira da Ladra à cata de preciosidades, como ele lhes chamava. Era minucioso na sua demanda e verificava tudo com cuidado. Gostava do simples e nacional e deliciava-se com o piroso, que fica melhor dito, kitsch. Uns dias era meu cliente e nos outros éramos parceiros de aventuras. Recordo-me de uns talheres de prata que lhe vendi e que os guardou religiosamente.
Naquele tempo, aquela feira era uma miríade de gentes de várias nacionalidades e a língua que se falava era a da sobrevivência. Uns precisavam de dinheiro rápido e outros aproveitavam o negócio. Uma salutar convivência que se vai perdendo. E honesta, acima de tudo. A maior parte dos que ali passaram esses dias já não existem, mas ficaram as histórias.
Outra possibilidade seria numa certa loja que vendia discos antigos e que faziam as delícias de quem se lembrava de alguns ídolos desaparecidos ou que, muito simplesmente, tinha ouvido falar deles. E começavam assim as conversas que eram sempre aliciantes e proveitosas. Ainda tenho alguns desses discos, do bom vinil que nunca termina.
Ou teria sido na noite, onde todos os gatos são pardos e as pessoas se sabiam divertir sem criar conflitos. Depois das discotecas fecharem, que naquela altura tinham outro nome, muitos continuavam a estar uns com os outros e o final da noite era, quase sempre, numa certa padaria que fazia umas bolas de Berlim fabulosas e que incitavam à conversa. Não sei e persiste o mistério que soa bem melhor.
O que sei é que assisti ao seu primeiro concerto e que senti que havia ali um manancial de conversas. Figura bem-apessoada, com um estilo inconfundível, os lenços e as cores, o que partilhámos desde logo, criou-se um elo que foi fácil de manter. António sabia que era visto como um lunático, mas não parecia que tal o incomodasse. A sua maneira de mexer atraía e deixava o olhar colado a si.
O cabeleireiro onde trabalhava, barbearia como dizia sempre, era próximo de uma loja onde eu ia namorar as saias e os vestidos caríssimos, mas que me diziam imenso. Roupa mística e colorida, com música e carisma, que mais se podia querer? Ele bem me dizia que me trataria da juba, mas nunca aconteceu e nem sei qual foi o motivo. Ser adolescente é ser parva e pensar que se é muito original.
Homem de província que veio para a cidade grande, teve sempre dúvidas sobre as suas capacidades, umas de adaptação e outras de criatividade. Educado, como poucos, mantinha o hábito de cumprimentar as pessoas que se cruzavam com ele na rua. Humilde, mas determinado, queria mostrar um lado que estava escondido há muito.
Música, era o que o aliciava bastante. Escrevia frases soltas que depois se juntavam e faziam todo o sentido. As suas raízes nunca foram renegadas e as festas e romarias tradicionais tiveram uma enorme influência nesta veia que ansiava por saltar e ser descoberta. Ainda bem que o fez.
Certo é que a sua chama começou a brilhar mais forte e, depois de bater a várias portas a apresentar o seu trabalho, alguém lhe reconheceu o valor. Olhar para ele era uma delícia e cada detalhe, cada pormenor, era estudado com perícia. Tudo lhe ficava tão bem e mesmo a sua fala envergonhada, que não perdeu. As viagens alargaram-lhe os horizontes, mas era aqui que queria ficar.
Qualquer coisa como entre Braga e Nova Iorque era a sua frase charneira, a que o identificava como uma impressão digital que é sempre única e não pode ser copiada. Sem perder a religião e muito menos os sentimentos fortes, era apenas ele. O amor era o seu mote. Homem de paixão e com paixão, tornou-se um ícone que tinha vários seguidores.
Pouco tempo aproveitou o sucesso. Continuava a duvidar de si. Era apenas humano e como tal imperfeito. Singular e muito interessante. Sempre a cantarolar na vida e nos pensamentos. Incompreendido e, de certa forma, envergonhado, assim era o António que gostava de pequenos detalhes e de objetos simples e deliciosos, como ele. Tinha tantos sonhos como se ainda fosse menino e a vontade era de continuar.
No dia de Santo António, santo que seria o seu protetor e cujo nome lhe foi dado, teve de oferta as asas que o levariam a outras paragens. Pessoa que morre jovem fica na marca de eternidade e do mito. Metas que não foram atingidas e vontades que ficaram tolhidas. Pode-se especular sobre o que se seguiria, mas nunca haverá uma certeza. Ele deixou um vazio enorme nas nossas vidas, uma tristeza gigante que caminhou ao nosso lado durante muito tempo.
Variações, um nome que não sofreu mais mutações, uma marca registada que não pode ser copiada, uma vida que chegou antes da época, um sonho que ainda está por se realizar. Comedido na sua vida privada, soube amar e ser amado como ninguém. Um sofrimento doce que era sentido com intensidade e correspondido. A sua morte trouxe a orfandade aos seus amigos e admiradores. Foi um murro no estômago que, passados tantos anos, persiste em doer.
António, nome de santo, coloca-o num certo altar que não religioso, mas, sim, social. Uma elevação que fez acordar muitas mentes e abrir portas que estavam fechadas com cadeados pesados e ferrugentos. Foi um ser especial e peculiar, alguém que nunca deixou de ser menino e que se fez homem para mostrar que a dor e o amor são para quem sabe sentir.
Passo a mão pelo cabelo e parece que o oiço, com a sua doce entoação, a dizer-me que ainda fazia de mim uma rock star. Solta-se agora a gargalhada e, por instantes, dou-lhe o abraço que teima em se partilhar. O António mora agora nos nossos corações. No meu está sempre presente e a cantar: Toma o comprimido…