O baile dos Bombeiros

A festa de final de ano atraía inúmeros adeptos que, sedentos de uma noite memorável, não se poupavam a esforços para o conseguir. Eram todos muito jovens e o seu objectivo era uma casa onde a dança, a música e as bebidas pudessem ser utilizadas até à exaustão. É a inconsciência e o acumular das hormonas a falar. O tio Francisco emprestava a casa e os convites estavam feitos. Tudo se encaminhava para a perfeição.

À última da hora a casa ficou indisponível. Gera-se o pânico entre o grupo. Onde iriam passar aquela noite tão especial? Não há mais nenhuma casa livre. Não, não pode ser. Vamos sair e não vos deixo sozinhos. Estamos comprometidos. E outros respostas negativas que os desanimaram. Estava tudo estragado. O desânimo tomou conta daquelas alminhas sedentas de diversão e liberdade. Em casa não podem beber e muito menos dançar as suas músicas preferidas. Era um beco sem saída.

Já o desespero se preparava para tomar conta do grupo quando um deles se lembrou dum prospecto que tinha em cima da mesa: Venha divertir-se e ajudar os Bombeiros. Fantástico reveillon! Estava encontrada a solução. Primeiro, riram muito da ideia. Os bombeiros apagam fogos, não fazem festas de passagem de ano. Cheirou-lhes a curiosidade e a uma noite divertida, entre gente simples e humilde. Já imaginavam os risinhos curtos e as piadinhas que seriam feitas aos seus participantes.

Colocaram pés ao caminho e foram animados de um espírito superior que salvaria a inconveniência da mudança de planos à última da hora. A distância ainda era razoável e tiveram tempo suficiente para elaborar o plano de ataque aos parolos e bimbos que pensavam ir encontrar. Eles convidariam as encalhadas e elas fariam olhinhos aos coxos e desafortunados. A festa já tinha começado e ainda não sabiam.

O salão estava abafado e o ar parecia denso e de cortar à faca. Eram os “tesos” que se juntavam para festejar mais um ano que se avizinhava. As mesas eram emprestadas, trazidas de casa de cada um e as cadeiras, poucas, estavam encostadas aos cantos, convidando ao descanso e ao mirone dos mais velhos. A um canto estavam as raparigas fora do standard: baixas, gordas, borbulhentas, infantilizadas. Do lado oposto, estavam os aspirantes a homens, a deitar olhares gulosos para aqueles corpos que se ofereciam.

A música, demasiado alta e com pouca qualidade, tocava a convidar o corpo ao ritmo. Era agitada e bem mexida servindo para descontrair e relaxar. Ao fim de pouco tempo já todos suavam e a sede apertava. Vendiam-se cervejas, sem restrição. É para uma boa causa, ajudar os bombeiros. Eles já tinham ultrapassado o limite e elas estavam eufóricas. Sem controlo tudo corria às mil maravilhas.

O tom mudou e um dos recém chegados convidou uma das sem par para dançar. Era baixota e muito roliça. Tinha cara de boneca e cheirava a gordura. Os lábios, pintados de vermelho vivo, atraíam os olhos e eram uma súplica para o beijo. Encostou-se, colando-se de tal modo que o corpo dele começou a responder sem ser planeado. A música acabou e ela não o largava nem ele podia.

Uma das meninas dançou com um rapaz muito alto e magro, de bigode envergonhado e calças que soltavam faíscas ao toque. Todo ele tremia e as mãos não sabiam o que fazer nem onde pousar. O suor, fininho, escorria pelas têmporas deixando-o desconfortável. A distância inicial foi ficando mais curta e os dois corpos iam-se atraindo, seguindo os acordes da melodia que enchia o salão. No final houve uma química que os obrigou a fixarem o olhar um no outro.

A meia noite aproximava-se, mais cedo do que podiam esperar. Os planos para rirem de quem lá estivesse tinham desaparecido e estavam todos enfeitiçados pelo ambiente. Houve algo doce e inebriante que os levava a olhar para quem tinham escolhido. Era um magnetismo inexplicável a que tinham de obedecer. As badaladas começam a soar, uma a uma, lentas e cadenciadas e eles e elas, como que respondendo a um ritual ancestral, abraçam e beijam-se.

– Feliz Ano Novo! É um coro de desejos e de vontades que o diz. Ele olha para a baixinha, ternurento e deliciado, ela olha para o fininho, com olhos de esperança. Houve algum cristal que se criou naquele baile, um diamante que aflorou sem se darem conta. Havia sentimentos no ar. A música apelava à dança mas eles sugavam as suas almas e os seus íntimos. Não se queriam apartar nunca mais.

O regresso foi em silêncio. Onde é que ficou a vontade de gozar os simples e os humildes? Onde é que se perderam? Iam pensativos e muito fascinados pelas descobertas feitas. Não houve risinhos, mas lágrimas a caírem, o nariz entupido das mágoas que estavam a afogar. E aquela noite mudou tudo, o fogo que nasceu no interior e a chama que ardeu enquanto foi lembrada.

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