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Laurinda

A Laurinda era um doce de criatura. Trabalhava na mesma empresa que eu e tinha como função deixar tudo limpo. Na sua cabeça “tudo” era a palavra de ordem pois até limpava o pó ao cartão canelado, o que se usava nas entregas. Nada lhe escapava e tudo se podia lamber, expressão usada numa série onde um homem cuidava de uma casa com rigor. Ao pé dela um mordomo inglês ainda passava uma vergonha.

A loja cheirava sempre muito bem e ela conseguia, talvez por artes mágicas, que o odor ficasse por muito tempo. O problema era a limpeza de sexta-feira. Aí é que tudo se complicava e eram necessárias medidas drásticas. Usava um produto com tanto amoníaco que eu começava logo a chorar. O pior nem era isso, o grave é que me fazia faltar o ar.

Era vê-la, cheia de preocupação, a encontrar estratégias para eu ir para a loja de cima enquanto ela esfregava azulejo a azulejo e ladrilho a ladrilho, com todo o cuidado, como se fossem meninos que tivessem o nariz cheio de ranho. Era tão dedicada que nada lhe escapava. Querida Laurinda…

Levava a sério a sua função e não havia nada que lhe apontar. Uma vez, vendo a borracha suja, lavou-a com uma fúria típica do açúcar. Claro que o resultado não foi o esperado e ficou tão envergonhada que dizia que podiam descontar o prejuízo do ordenado. Bem, na verdade matou-a de tanta lixívia, mas isso agora não interessa nada.

Era casada com o “meu Ártur“, assim com o a aberto, há uma eternidade. Ele nunca entrava na loja, ficava sempre na rua à sua espera, ao final do dia. Tinha uma figura exemplar. Um homem de fato completo e chapéu muito direito na cabeça perfeita, com ares de agente secreto. Dava-me imensa vontade de rir aquela educação à moda antiga. Nunca o convenci a esperar sentado porque não se atrevia a entrar. Ali era local de trabalho.

Um dia perguntei à Laurinda se tinha filhos. Os meus tenros anos ainda não mediam bem as palavras que devia usar com certas pessoas. Vi-lhe lágrimas nos olhos. Das disfarçadas, mas sentidas. “Nunca ocupei, menina.” Até a expressão era de humildade. Um farrapo de ser humano que se sentia menor por não ter sido mãe. Não insisti no tema, na esperança que ela o abordasse. Nunca o fez e eu, por respeito, nunca mais o voltei a mencionar.

Para minimizar a minha deselegância perguntei-lhe o que gostaria de ter, talvez um desejo antigo que eu pudesse satisfazer para colmatar a falha. Da sua boca saíram as palavras mais singelas que alguma vez ouvi: “Sabe menina?” Pois, sempre me tratou assim por mais que insistisse para o não fazer. “O que eu queria mesmo era um daqueles coisos que se usam no fogão. Daqueles que fazem logo chama.” Descodifiquei de imediato: um isqueiro de cozinha.

Confesso que tanta simplicidade me tocou. Ofereci-lhe um, em tom de azul. Fiz um embrulho com uma caixa grande, forrei-a com papel com bonecos e coloquei ainda um laço. A alegria dela foi genuína. Abraçou-me como se fosse a melhor coisa do mundo. Chorou a sério e a minha alma sangrou. Que ser humano tão fantástico! As pessoas ambicionam tanto e uma coisinha de nada fez a alegria daquela pobre mulher.

A partir desse dia tinha uma sombra constante. Nunca mais me largou. Para ser sincera gostava mesmo muito dela. Criámos um laço tão forte que foi difícil de alargar quando deixei de trabalhar naquela casa. Sempre que podia voltava para a visitar. Foi ficando cada vez mais velhota e encolhida, sobretudo quando o seu Ártur se finou. Mirrou como se uma parte sua tivesse ido com ele. E foi. Tenho a certeza.

A loja fechou e não sei que caminho a Laurinda seguiu. Sinto-lhe a falta. O facto de ter o mesmo nome que uma tia que eu adorava, ainda nos faz ficar mais próximas. Não sei se o nome tinha influência, mas a pessoa era tão doce como a minha querida tia. A Laurinda passava despercebida aos outros, mas eu ouvia-a e dava-lhe abraços.

Hoje fico com o enorme amor que ela me deu e a saudade que me acometeu. Ser simples é tão fácil, mas torna-se difícil. Tende-se a complicar tudo e a essência, aquilo que é mesmo importante, esfuma-se como um cigarro que se deixa queimar. A imagem desta mulher invisível e do seu amado marido, estão na galeria dos meus queridos e jamais a irei esquecer.

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