A infância é como toneladas de tristeza misturada com quilogramas de felicidade. A grande época bipolar da nossa vida.
– Albert Espinosa (actor, escritor, dramaturgo e realizador espanhol)
Nunca consegui esconder o choro das duas vezes que li Meu Pé de Laranja Lima. Se bem que a obra de José Mauro de Vasconcelos marque presença na secção dos livros para adolescentes, assim que terminei a primeira leitura, tinha eu dezoito anos, questionei-me acerca da sua adequação para gente nova. É que a história é tão triste…
No entanto, é muito mais do que a entrega da tristeza ao leitor… é ternura, é amor, é amizade, é sofrimento, é a magia da infância e o desencanto dos crescidos. É sentirmo-nos, como poucas vezes acontece, na pele do rapaz “com o diabo no corpo”, porque nos parece tão mal revermo-nos nos comportamentos daquela gente grande e sem graça e é a aprendizagem da pior forma que ela pode ser ministrada, saltando etapas, saltando a infância, porque “a vida ensina tudo cedo demais.”
No primeiro ano de faculdade, refugiei-me na Literatura para fugir a uma Matemática que começava a mostrar-me já nessa altura (ainda que demorasse mais de quinze anos a admitir) que talvez eu tivesse feito todo o percurso escolar enganado, passeando-me pelas ciências exactas mais por defeito do que por vocação. O meu desempenho no primeiro ano foi de tal forma desastroso que ponderei desistir, eu que tinha entrado com boa média, mas provavelmente foi também o ano mais importante da minha vida literária (não na produção, mas na entrada em definitivo no mundo dos livros). Meu Pé de Laranja Lima foi um dos textos que me resgatou do inferno universitário que me engolia sem compreensão, sem espirito crítico, sem sentimento: somente lógica e razão. Uma parcela relevante da dimensão humana que me caracterizava foi sendo amputada ao longo do curso por outra que, não deixando de ser importante, não é de todo aquela na qual hoje me revejo. Diariamente, no comboio da linha de Cascais, passando ensonado pelas madrugadas junto ao mar que se fazia Tejo ou ao longo do rio que se diluía pela linha Barra-Bugio à tarde, eu viajava para longe… e aconteceu encontrar na tristeza daquela história a fuga a essa outra tristeza que era então a minha vida académica.
Autobiografia de um menino pobre numa família numerosa, o livro é um tratado sobre a inocência e a força avassaladora das circunstâncias que nos obrigam a crescer à força. Zezé encontra nos disparates com que sente a vida a forma possível de se relacionar com o mundo, de se manter são aos seis anos perante a miséria que o envolve. Toma conta do irmão Luis, de quatro anos, e recebe o carinho da irmã Glória. Leva pancada de outros, dos irmãos, das irmãs, do pai, personagens de quem esqueci os nomes, rouba uma flor para entregar à professora, porque ninguém lhas oferecia, e desabafa com Minguinho, o Pé de Laranja Lima que estava plantado no quintal das traseiras da sua casa… e conhece o “Portuga” Manuel Valadares, que lhe mostra a amizade e a parte colorida do mundo dos adultos, arco-íris que até então sempre lhe fora escondido.
Reli o livro aos vinte anos sem que ele tivesse perdido a intensidade que eu havia sentido durante a primeira leitura. Para um livro ou um filme me marcar, ou me apanha no momento certo ou é capaz de reflectir parte de quem sou (podemos não saber quem somos, mas sabemos, quando nos revemos em algo). Creio que cada uma das condições foi satisfeita e, se eu hoje sou uma pessoa diferente da que era há dezassete anos, não perdi completamente a forma de sentir que então me caracterizava. Daí crer que esta história me marcará sempre.
Nesse tempo, eu questionava se isso seria bom: será bom mostrar a tristeza às crianças? Aos jovens? Numa altura em que tudo é “antipedagógico”, impõe-se a defesa de Meu Pé de Laranja Lima. Porque o mundo é feito de alegria e de tristeza e a negação da segunda não a faz desaparecer, apenas estende a passadeira por onde caminhará a dor. É bom saber que a tristeza faz parte da vida, permitirmo-nos aceitá-la sem a diabolizar como irritantemente o positivismo da moda nos tenta inculcar. Não é bom estar triste nem é bom pôr os jovens tristes, mas é bom saber que a tristeza existe e que caminha connosco nesta viagem chamada vida, existência ou o que quer que queiramos nomear a este nosso “estar aqui”. Caminha lado a lado com a alegria, a angústia ou a tranquilidade… mas caminha. Exorcizá-la é negar um aspecto tão visceral da existência: se a morte de um filho, de um pai ou de um grande amigo não nos deixasse tristes, isso faria de nós melhores pessoas?
Se for um livro a abrir-nos a porta, ainda para mais real, ainda para mais bem escrito, ainda para mais intenso, ainda para mais que consegue retratar o que de bom e de mau acontece na vida, tanto melhor. Apesar de contar uma história verdadeira, podemos sempre atenuar o sofrimento com o “pelo menos é um livro” e aprendermos assim a encarar a tristeza sem o peso da vida real a abater-se sobre nós, sobretudo quando somos crianças.
PS: A continuação de Meu Pé de Laranja Lima, Vamos Aquecer o Sol, não sendo tão bem conseguido como o primeiro, vale muito a pena para quem tiver curiosidade em saber como Zezé entra na adolescência e, ao deixar de ser menino, descobre o amor.