Todos os lugares eram escuros

Ela era um silêncio. Só se ouvia o chão martelado pelo temporal. As árvores corajosas a enfrentar o dilúvio, a perderem as folhas para o chão sujo, imundo (afinal, o que é um chão limpo senão solidão?). As poças cada vez maiores e os pingos a perturbá-las, a obrigá-las a ser miragens concêntricas. Nas poças estava o reflexo do mundo inteiro. O mundo inteiro ao contrário. Como ela. Ao contrário. E agora, todos os lugares eram escuros.

Os pés dela eram suaves, com passos incapazes de se infiltrar no ruído da chuva. Ou talvez ela fosse invisível. Já não sabia. Há algum tempo que já sabia pouco de coisa nenhuma. Sentiu um cheiro forte, de infância. Não sabia nomeá-lo, nem localizá-lo em si. Era algo fugidio, que se via do canto do olho sem nunca se ver. Porque todos os lugares eram escuros. Se ela conseguisse, diria que lhe cheirava a frio: a árvores nuas, a roupas quentes, a céu nublado, a queimado. Ela sentia todos os cheiros dentro do frio, mas não os sabia descrever. Tudo estava ao contrário, tudo. Os olhos mexiam-se muito, confusos, procurando invocar respostas, mas sem estarem certos das perguntas.

Parou. Notou-se encharcada, como se se visse pela primeira vez. Por vezes, tornava-se imperceptível até para si própria. Arrepiou-se. Olhou em frente. O céu não queria mostrar o sol e ela precisava desesperadamente de se lembrar de alguma coisa, mas não conseguia. Estava invisível. Ao contrário. No escuro. Quem sou eu?, quis perguntar-se, se ainda o soubesse fazer.

Continuou a andar, com os seus passos pequeninos que não rompiam a natureza. Afinal, ela era um silêncio, ninguém a poderia ouvir. Não soube quanto tempo andou debaixo da chuva, com o temporal a açoitar-lhe o corpo, e o medo – medo de quê? só medo, tudo era medo – a guiá-la, a fazê-la tropeçar nas recordações, duvidar do que sabia, a obrigá-la a tomar caminhos errados e incertezas. Até que se viu parar em frente à porta. O prédio tinha um dia sido verde, talvez, mas agora só se via a cor do cimento – tinha-se descascado, despido, enlouquecido; a porta que parecia suportar aquele pretérito esquecido era castanha, de madeira, parecia escangalhada e podre, partida no canto inferior direito. Era ali. Era mesmo ali. Os pés tinham sabido guiá-la. A porta enganava – era pesada. Empurrou-a com o corpo fininho, os ossos ensopados, tremendo. A porta rangeu e ela aproveitou para enfiar-se por uma fissura de breu, espalmando-se como um rato para conseguir entrar.

Dentro: negritude, mutez, calor.

Dentro: salvação.

Andou às cegas, cuidadosa. Sabia, pelo menos, que estava no lugar certo, longe dos lugares escuros e ao contrário, onde ela parecia estar sempre fechada e invisível, sempre fechada e sem chave, sem código, sem porta sequer. Este lugar, mesmo que repleto de escuridão, era o único que lhe dava luz, que lhe abria uma janela, que a deixava ser visível e concordante. O mundo como tinha de ser, direitinho. Era disto que precisava de se lembrar: era deste caminho, desta premência, desta redenção – era de cá chegar. Andou mais um pouco, olhando em redor e fingindo conseguir ver na negridão. Sentia uma espera inexplicável, com desconfortos gigantes no coração e uma sombra que lhe apertava o respirar.

O primeiro flash. E algo a cair.

Tlim.

O segundo flash. E ela a sentir um vidro na ponta do sapatos, algo que tinha rebolado até ela. Pegou nele. E viu-o. Na obscuridade era onde se via melhor – aquele frasquinho era a horta onde queimavam lixo quando ela era criança. Ela de camisola de lã a ver o fogo que tudo destruía, que tudo salvava, o fogo fascinante. De mão dada com o irmão pequenino e o braço da avó à volta dos seus ombros, a vigiar, e ela mais segura do que alguma vez se voltaria a sentir. A noite a abrir-se atrás das nuvens, a esconder as árvores nuas, mas ao fundo um céu que ainda era de um azul-amarelado que só existia ali. O cheiro a queimado. O cheiro a infância. O cheiro a frio. Quis chorar mas sorriu.

O terceiro flash. O quarto. O quinto. E o som dos vidros a cair e a rolar até ela, tantos tantos que eram incontáveis. Ela baixou-se com dificuldade e apanhou-os. Guardou-os nos bolsos, guardou-os bem juntinhos à pele. Num deles, o primeiro roçar de mãos com o amor da sua vida – onde estaria? há quanto tempo se lhe teria varrido da mente aquele pequeno gesto que ainda lhe aquecia o coração, a voz que ainda a fazia tremer? Noutro, as histórias da aldeia que o pai lhe tinha contado e que ela nunca tinha esquecido – até o mundo se lhe ter arrevesado. Arrevesado. Que palavra linda, agora que se lembrava dela. Que linda tinha sido a sua vida, pensava ela quando conseguia entrar naquele quarto escuro e recuperar algumas das suas memórias, algumas das caras e dos nomes que a tinham acompanhado. Que triste era o olvido, que triste estar desmemoriada e ser um silêncio. Que triste ter de percorrer vendavais para conseguir chegar àquele lugar negro, o mais fundo de si, e ver-se. E saber-se. E poder voltar a viver.

Lentamente e com dificuldade, deixou-se cair e sentou-se no chão. Chorou, enquanto os flashs continuavam a iluminá-la, a iluminar os sulcos da sua pele, os tremores da idade, os cabelos de nuvem; a alumiar o tempo que tinha escoado. Sentiu-se um relógio de areia. Sentiu-se feita de cristal e que do peito a areia tinha já caído toda, grão a grão, pernas abaixo, até aos pés, e para fora dela. Irrecuperável. E as memórias, de vidro, a caírem e a bater-lhe nos pés. Ela a recordá-las. A sabê-las. A reconhecê-las. Guardou-as todas nos bolsos. Que linda era a vida, pensou entre lágrimas. Que linda era a vida.

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