Famílias felizes não têm história. Este é o relato da nossa.
O mundo é aos quadrados, disse três vezes. Ainda resmungou qualquer coisa – que não consegui perceber bem – sobre os arqui-inimigos dos Deuses. Depois, gritou que não tinha fome, bateu a porta com força e saiu. Fiquei sentada, sozinha, a tentar avaliar as minhas emoções. Não era a primeira vez que me dava conta de não estar com disposição para a tentar compreender.
Uns dias mais tarde, chamou-me ao seu quarto, no primeiro andar. A princípio estranhei, pois fazia muito tempo que não me dava autorização para subir. Ao entrar naquele local sombrio, cruzei-me com o medo e com uma descrença definitiva, as pernas tremeram-me. Embora soubesse que ambas já tínhamos desistido, enchi-me de uma expectativa absurda que, na verdade, durou pouco mais de um segundo. Um cenário desolador, chocante. As paredes escritas, a sangue, com palavras impronunciáveis, o fedor a fezes, o ar irrespirável. O chão era um amontoado de roupa suja. Parei junto à cama e, de pé, esperei que me dissesse a razão por que me chamara. Estava deitada, nua, em posição fetal, virada para a parede. Rapara o cabelo, deixando uma diminuta trança na nuca. Ao fundo, a pequena janela aberta, através da qual se conseguiam ver as luzes deprimentes do SoHo. Não me lembrava da última vez que entrara no quarto onde a sua vida inútil começara. Os barulhos da rua enchiam o quarto de um caos quase insuportável. Ainda assim, impávida, não esboçou qualquer movimento, qualquer som. As estridentes sirenes dos carros de polícia, habituais àquela hora, eram um inferno mais fácil de suportar do que estar ali a olhar para ela. Um mutismo cortante, uma paz ilusória.
No meio daquela desordem ocorreu-me que eu quase morrera naquele quarto para que ela nascesse. Parabéns, foi uma guerreira, fez o que qualquer mãe faria, disse a parteira. Percebi, anos depois, que fora um erro ter lutado durante o parto. Que fora um erro, aquele nascimento. Estávamos em 1962, a 22 de Março. A tortura durou várias horas. Eram 22.22h e o sofrimento sugeria o que seriam as nossas vidas dali para a frente. Na verdade, a vida que ali começava, tinha todas as semelhanças com aquilo que fora a minha vivência anterior: uma família ausente, um pai incógnito, um mundo traiçoeiro, um nascimento nefasto. Uma dor hereditária, a existência transformada num lugar inóspito.
Ao longo dos seus anos de sobriedade, que foram os primeiros dez, suportou o escárnio das crianças vizinhas devido a uma gaguez profunda. Assisti, sem forças para o impedir, ao início do fenómeno da segregação e, dois anos depois, ao desmembrar absoluto da sua brandura. No dia em que fez doze anos, decidiu acordar o vento. O isolamento – permanecia dias a fio no quarto – e a infinita melancolia deram lugar à revolta. A fúria dos Deuses, um animal selvagem sedento e faminto. Um furacão arrasador que se vingaria de todos aqueles que a depreciaram. Uma vez, a caminho do Union Square Park, reconheceu um miúdo que fora nosso vizinho. Sorrateira, foi atrás dele. Foi tão agressiva que lhe partiu duas costelas e o cúbito do braço esquerdo, deixando-o inconsciente. Tranquila, sentou-se no chão ao pé dele, a beber cerveja, até a polícia aparecer. Tinha quinze anos.
Apesar da penumbra, conseguiam ver-se os contornos das suas costas, os ossos salientes, uma cópia das minhas. Enquanto eu olhava, estarrecida, para aquele quarto transformado numa pocilga, a sua voz rasgou, finalmente, o ar.
“Já não suporto que me vejam assim. Mata-me!”. Dilacerante. Fiquei em silêncio, o sangue a congelar.
Foi nesse final de tarde que percebi todo o poder destrutivo que a sua loucura produzia em mim. Alguns minutos antes de todas as fatalidades que se sucederam, mas que não mais podiam ser adiadas e evitadas. Nenhuma dor dura para sempre. Eram os Deuses do universo e os seus arqui-inimigos a pedir-me para corrigir, vinte e dois anos depois, a negligência da natureza. Uma força conjunta, a vontade final.