Sempre que um livro perdia a alma, um pássaro chorava-lhe de manhã à janela. De manhã, assim que se começasse a descobrir no céu alto e fundo as primeiras cores claras a esbaterem as estrelas, ela abria os olhos. Ainda antes do sol iluminar, mal ela abria os olhos, conseguia sempre adivinhar quando é que o pássaro ia chorar, porque sentia um arrepio que a fazia tapar-se até ao nariz, fosse Inverno ou Verão. Pensava por minutos na vida e no destino, pensava nos livros, pensava no significado de “fado” e de “liberdade”. Depois, com a pontualidade do raiar do dia, o pássaro chorava, tristemente, à janela dela.
Era assim que ela sabia que era dia de resgatar os livros abandonados.
Nesses dias, levantava-se tranquilamente, vestia-se e abria a janela para ver o sol e para roçar os olhos nem que fosse numa sombra, um vislumbre, uma impressão de penas e olhos e cantos. Mas nunca conseguia. A avó e a mãe tinham-lhe explicado que o pássaro era um guia daquela família de guardadores de livros. Um animal misterioso, sábio e livre. E a avó avisara-a várias vezes que ela não devia vê-lo nem procurá-lo, que vê-lo dava azar e ela ainda acabaria por morrer, por morrer e ser levada pelo vento, por morrer longe da família, longe dos livros, e nem sequer conseguir transformar-se num pequeno poema, ou numa pequena brisa, que era no que se transformavam os guardadores de livros em fim de vida. Em literatura, em árvores, em folhas, em som, em vento.
Naquele dia, bebeu chá em vez de leite com café. Comeu, como sempre, um pão com manteiga quentinho. A mãe sentou-se ao lado dela e suspirou: “Chegou a hora de ires sozinha”. Ela parou de mastigar. Sentiu horror e alegria, insegurança e força. Continuou a comer e só quando acabou de beber o chá, disse “Eu consigo”. Já tinha adivinhado, não sabia porquê. Talvez naquela manhã tivesse acordado com o avassalador sentimento de quem está só, e tivesse sabido. “Eu consigo” repetiu, sorrindo. Não sabia se tinha dito para a mãe ou para ela própria.
A mãe deu-lhe a mochila vazia, com água e uma sandes. Ela sentiu uma pontada no coração, porque estava habituada a ir com a mãe, e deu-lhe um abraço enorme, como se temesse derreter-se ou queimar-se durante aquela primeira viagem sozinha. Com medo de ver o pássaro e transformar-se em todos os presságios da sua avó. A mãe olhou para ela, e viu-lhe nos olhos todos os sinais de quem tinha crescido e abraçado a sua sina. Teve vontade de chorar, mas nem por um momento questionou o destino da filha.
Ela saiu de casa para correr mundo, sem saber para onde iria nem quando, ou se, voltaria.
O destino da família dela, há gerações e gerações, era resgatar todos os livros maltratados e abandonados: os que tinham sido emprestados sem consciência nem saudades, os que iam parar ao lixo por falta de espaço, os que eram revendidos por falta de amor, os que eram pintados e rasgados por crianças sem vigilância, os esquecidos nas prateleiras, sótãos e arrecadações. Todos acabavam por desaparecer de onde estivessem, e muitas vezes a sua ausência nem sequer era notada, o que ainda a deixava mais triste. Ela entrava onde o livro a chamasse, onde o pássaro invisível a guiasse, e guardava o livro choroso na sua mochila. Durante a viagem encontraria um novo lar óptimo para eles, como a mãe dela conseguia sempre.
Quando os livros a chamavam, ela não podia dormir, e tinha de correr mundo dias e dias sem fim, sem tempo para descansar ou comer, até estarem todos salvos e realojados. Ela ouvia o choro do pássaro, o lamento pelo abandono, como se fosse uma criança perdida e sozinha, e sabia, arrepiava-se. Depois, começava a sentir os lamentos dos livros, os lamentos daqueles livros que eram como almas num cemitério, almas com tanto ainda por fazer. Mal saía de casa, sentia dentro de si o pássaro, o seu guia, como uma bússula nos seus passos, como se as linhas das mãos a levassem naturalmente. Olhava inúmeras vezes para o céu, para os lados, para as árvores, sempre à espera de ver o pássaro que ela imaginava ser uma coruja ou um corvo. Nunca o via. E assim que recolhia o primeiro livro, na cabeça dela começava a ouvir as vozes dos eleitos para hóspedes, fossem vozes que sussurram em bibliotecas, fossem vozes esfomeadas de crianças que começam a ler, fossem vozes suplicantes e ansiosas de aprendizagem, de eruditos e leigos, de músicos e de engenheiros, de pobres e ricos, e velhos e novos. Os livros nunca morrem, têm sempre um destino. Só se mata um livro na fogueira, mas nunca sem que ele nos amaldiçoe um pedaço da nossa alma, enquanto as chamas o consomem. Nunca viveremos tranquilos se algum dia queimarmos um livro.
Por isso, naquele dia – naqueles dias seguintes – tinha de correr mundo durante o tempo que fosse preciso, conhecer culturas e países e arte e lógica, procurar até lhe doerem os pés. Não podia parar até conseguir chegar a todos eles, em todas as cidades, aldeias, bairros, casas, quartos e gavetas do mundo.
Só dois meses mais tarde é que a mãe a viu entrar em casa. A mãe chorou de emoção ao ver-lhe a mochila vazia, a pele queimada, os sapatos gastos. A sua filha tinha cumprido o seu destino pela primeira vez, sozinha, e ela não poderia estar mais orgulhosa. Abraçou-a com força.
“Mãe” disse ela baixinho.
“Diz, amor?”
“Quero ser pianista.”