Sorvo o café e olho a cama desfeita. A luz amarela do candeeiro de rua, as paredes descascadas do beco, os lençóis cor-de-laranja enrugados desenham uma nova geografia na minha pele. É sol lá fora, é sol cá dentro. Aqui parece mais fácil esfaimar os medos e equilibrar os sonhos na ponta da consciência. Empurrá-los para voarem. Ou deixar que caiam, tanto faz. Porque aqui é mais fácil ser terrivelmente feliz só com os pés descalços no chão de madeira.
Há um mês que construo este universo. Outros ficaram para trás, embora os traga sempre no bolso. Ajeito as almofadas, as memórias, as utopias. O ronronar dos gatos serpenteia entre as histórias e uma luz ténue reflete-se no espelho. Não sei bem quem me olha de volta, de onde, o que quer, mas a cama desfeita guarda respostas, eu sei, guarda promessas. Pede para deixar entreabertos o corpo, as pálpebras, as pregas dos lençóis. Só assim não se tornam mortalhas. Pois talvez deixe. Talvez deixe. Aqui tudo é possível. Até tornar-me sinfonia.
Saio com uma lista mundana: café, massa, fruta. Do outro lado da porta começa o silêncio. Não cresci nestas ruas, o som dos meus passos ainda não é hábito na calçada, mas prevejo danças e rotinas bonitas. Atrás das janelas escondem-se vizinhos que não conheço, com vozes rasgadas e vidas remendadas, costureiros de fados. Partilharemos em privado as noites, os sons dos bares, o sono. Cada um com as suas madrugadas cheias de copos vazios. Cada um com os seus copos cheios de madrugadas vazias.
Chegaremos a essas madrugadas espalhadas pelo caminho. Estão no horizonte. Terão forma de festa e de insónia, de choro abafado e de coração demasiado agitado, demasiado deslumbrado. Serão um posto de abastecimento para a poesia, para a loucura, para o espanto pela vida. Mas não hoje. Hoje só quero inventar esboços e comprar café. Hoje tenho a consistência de uma manhã de domingo, como se um pássaro me tivesse pousado nos cabelos ou na melancolia. Hoje sou feita de asas.