Driving Home For Christmas

Durante os anos da infância e adolescência, as memórias mais vivas dos Natais localizam-se a norte de Alapraia, ou na Marinha Grande, ou em Aveiro. É possível que as quadras passadas em casa e nas terras das famílias materna ou paterna se tenham distribuído equitativamente pelas três geografias, mas de casa tenho poucas lembranças.

Por outro lado, a viagens para passar o Natal com a família sempre tiveram o seu quê de mágico, de nostálgico e de alegre numa mescla bicolor como as bengalas da quadra, de frémito que antecipa a reunião por vezes anual, uma prima distante num abraço fraterno, a casa cheia em Aveiro (40, 50 pessoas) ou o recato na Marinha Grande (nós, a tia e a avó), e de expectativa pela boa vontade dos adultos sobre o que nos iriam oferecer (não tenho ideia de algum vez ter acreditado no Pai Natal ou no Menino Jesus como o comprador por atacado dos nossos presentes).

E então ouvi a música do Chris Rea, muito depois da infância, da adolescência e da imaturidade, camadas de sedimentos de incompreensão do mundo calcadas bem fundo no termómetro da idade, em cima das quais fui depositando um outro olhar, sobre o Natal, o Amor e a Vida. E foi nesta fase que ouvi Driving Home for Christmas, com os trintas bem levados. Pesquisei o título por me soar a algo, algo que talvez tenha ouvido num filme, não sei bem… surgiu a música.

“Conheci” Chris Rea com o álbum Shamrock Diaries, lançado em 1985, um ano antes do single Driving Home for Christmas. Julgo que o álbum veio naquele contingente que fomos formando, a minha irmã mais velha e eu, das cassetes, primeiro, e CDs, mais tarde, que o meu pai nos trazia das viagens de trabalho. Não morri de amores; na verdade, tirando uma ou outra música, o álbum foi-me bastante indiferente.

Mais de vinte anos decorridos, eis-me novamente a ouvir Chris Rea, e com ele a recordar as viagens para passar o Natal com a família. Apesar da letra da canção ser toda ela construída em torno da expectativa do reencontro, a minha relação com o Natal, com esses Natais, foi, desde cedo, ambivalente: nunca desfrutei completamente da alegria que a conjugação Natal-Família evoca, como nunca me senti deslocado de um certo acabrunhamento que me atravessa nesta época… quantas vezes não recolhia ao quarto para, longe das luzes, doces e conversas, sentir um pouco o silêncio junto do ruído? Podiam não ser muitos os minutos passados neste modo intervalar da realidade, mas regressava a um lugar familiar.

Driving Home for Christmas. Talvez estes momentos, em que pensava na família lá fora, na sala, ou lá em baixo (conforme estivesse na Marinha ou em Aveiro), em que pensava na sorte e no azar que me tinha calhado, consoante o mood do Natal desse ano, e, em que espreitava pela janela, e imaginava como estaria a ser vivido o Natal, os muitos Natais, por essas casas, esse país, esse mundo fora… quanta alegria e quanta tristeza… talvez esses momentos formassem o meu Regresso a Casa para o Natal, a minha forma particular (todos devemos ter uma) de viver o título da canção do cantor e compositor inglês.

A canção nunca fez parte da infância, mas, sorrateiramente, bateu à porta da maioridade e abriu o alçapão das reminiscências. Nem a melodia é particularmente empolgante, muito menos a letra é original. Mas o título – a importância dos títulos! – ouvido não sei quando, não sei onde (ou nunca antes ouvido, mas imaginado), remeteu-me para a canção e para as viagens de volta a esse lugar familiar, de onde eu saía para um quarto depois do jantar e encontrava um outro espaço familiar. Familiar: uma palavra, dois sentidos.

[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]

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