As avós nunca morrem

No tempo em que a minha avó ainda por cá morava, tudo se resolvia com a maior das facilidades. Onde ela estivesse não havia falha nem pergunta sem resposta. Era dona duma sabedoria milenar e por isso todos a procuravam. Uns pelos motivos mais mesquinhos e outros, porque a gostam de visitar.

Qualquer zanga terminava com a sua voz quente e carregada de palavras mágicas: Então que é isso? Se fosse para andarmos à bulha tínhamos nascido com garras. E fazia um gesto que lembrava os gatos quando querem dormir ao borralho e não os deixam. Depois vinham as festinhas na cara e uma história com uma moralidade que todos entendiam.

A escola e ela não se tinham dado bem, porque era preciso cuidar dos animais e das fazendas. Levantava-se de madrugada e trabalhava imenso. Quando lá chegava já estava tão cansada que a mestra, em pouco tempo, a dispensou do tormento das letras e dos números. No entanto, as contas eram o seu mundo e entendia tudo com a maior das facilidades.

A cozinha era a sua sala de audiências. Havia sempre panelas ao lume, cheias de qualquer coisa de muito bom e colheres e pratos espalhados pela casa com mimos que fazia para nós. Das suas mãos saíam maravilhas que deliciavam as nossas papilas gustativas e nos arrastavam para aquela divisão.

No entanto, essa era somente uma parte da sua imensa habilidade. Das suas calejadas mãos soltavam-se pequenas delícias de pano feitas com o restante dos tecidos que os outros deitavam fora. Eram colecções de bonecos que pareciam conversar, com muito conhecimento, quando arrumados no mesmo canto.

Fomos os meninos mais bem vestidos da terra durante muitos anos. Se queríamos um vestido ou uns calções, bastava fazer o desenho que ela, com os seus truques de agulha, inventava o que desejávamos e ficávamos vaidosos de tanta beleza. Todos falavam das farpelas que ela inventava. Tinha umas mãos de ouro.

Nos seus bolsos, havia sempre doces que ela fazia com imenso açúcar e ainda mais amor, para nos adoçar a boca e os dias. Quanto as bicicletas nos deitavam ao chão ou os carrinhos de rolamentos eram mais velozes que nós, ela ralhava com esses objectos e ficavam de castigo. A seguir vinha limpar as nossas lágrimas de meninos mimados da cidade e rir-se da nossa desgraça. As feridas saravam num instante e tudo voltava ao normal.

O que nunca esquecerei é o avental. Tinha dezenas deles e de todos as cores e feitios. Sempre por cima da roupa, para não sujar a boa que era para levar à missa, funcionava como uma ferramenta que estava sempre de serviço. Limpava o ranho que quase voava e as lágrimas que fugiam dos olhos de crianças envergonhadas.

Também curava doenças com umas mezinhas que ela sabia e que prometeu ensinar-me. Como que por milagre apareciam uma espécie de rebuçados que nos devolviam a saúde e a vontade de voltar a comer. Os cheiros entranhavam-se e as barrigas cantavam de tanto festim.

A missa era sagrada para ela e, mesmo não querendo, os nossos pés carregavam com o corpo e ouvíamos tudo muito direitos e de cabelos bem penteados. No fim ainda havia o beija mão ao padre, mas conseguíamos sempre maneira de ser corridos da igreja.

Que belos tempos que tivemos e que felizes fomos sem o saber. A avó era a fonte de todas as alegrias e de todas as motivações. Com ela estava sempre tudo bem e sem ela sentíamo-nos tão perdidos! Quando ela abalou para a terra dos que ficam para sempre, chorei umas lágrimas ásperas e duras que me feriram a cara.

Apesar de ser adulta, continuava a tratar-me como uma menina e a fazer-me saias e coletes como se ainda fosse desfilar para as procissões de outrora. Fiquei com os aventais dela e com alguns segredos. Antes de ir, fez-me prometer que só os passaria a alguém tão iluminada como eu. Foi nessa altura que percebi como lhe devia tanto!

É este o segredo das avós, fazer-nos sentir únicos e especiais. Tudo isto misturado com umas palmadas na hora certa e uns bolos cheios de coisas maravilhosas que ainda hoje, tantos anos depois, continuam intactos nos salões da memória gustativa do nosso passado.

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