Javier Marías e aquilo em que não queremos pensar

Javier Marías é um autor muito relevante em Espanha (shame on me por não o ter descoberto antes), que fiquei a conhecer com o livro Os enamoramentos, que uma amiga me emprestou, e foi-me impossível resistir este ano ao seu mais recente título, Así empieza la malo.

Resistir como quem não consegue deixar de ir mexer numa crosta, sentir uma afta com a língua, ouvir músicas triste para rebolar ainda mais na tristeza.

Esta foi a primeira impressão que tive deste autor: Javier Marías tem o dom de mexer e remexer em sentimentos e pensamentos que somos incapazes de admitir, por vezes até para nós próprios. Aqueles pensamentos mais parvos, mais maléficos, mais orgulhosos que temos, que surgem por um momento e os afastamos, porque não queremos ser aquela pessoa que está a pensar naquilo. No entanto, ele não os afasta: ele expõe-nos, trá-los para a luz do dia e fala deles na segurança de um livro, na segurança da boca de uma personagem. Ele não só nos faz identificar com aquilo que mais queremos esconder, como ainda é capaz de filosofar sobre isso, de massacrar-nos com razões, ou apenas de deixar claro que conhece o mais negro de nós.

É lixado ler Javier Marías.

JavierMarias_eaquiloemquenaoqueremospensar_1Tantas foram as vezes em que fechei o livro Os enamoramentos, com vergonha de como me identificava com aqueles pensamentos absurdos, voltando sempre depois ao livro, admirada com a audácia daquele homem que os punha ali, em cima da mesa, para lidarmos com eles. Por isso é lixado, mas no bom sentido. Deixa-nos desconfortáveis, sim, mas de uma maneira muito humana, na minha opinião. Mostra que todos nos podemos identificar porque todos pecamos e erramos em pensamento, e que no pensamento existe também toda a liberdade para o absurdo, que talvez seja essa liberdade de pensar sem filtros e sem juízos que nos impede de ir mais além, que nos torna bons nas acções. Javier Marías mostra-nos humanos.

Talvez tenha muito a ver também com a forma como ele escreve: os parágrafos enormes, sem pontos, e as páginas inteiras de um só parágrafo. Os livros de Javier Marías parecem fluir com os pensamentos das personagens, com as suas histórias e as suas explicações e análises, unindo-se de uma forma muito própria que nos dá uma história brilhante.

Obviamente que também dependerá da fase da vida em que estamos, e talvez haja muita gente não se identifique. Contudo, lembro-me que foi a primeira coisa que comentei com a amiga que me emprestou o livro, foi aquilo em que mais concordámos.

No caso de Así empieza lo malo, não me identifiquei tanto. Houve passagens que sim, sem dúvida, que exploraramJavierMarias_eaquiloemquenaoqueremospensar_2 muito daquilo em que já pensei, mas não senti tanto esta vergonha, este assombro. Pode ter a ver com a fase da vida, com a idade, ou com a história em si. Adorei Os enamoramentos, adorei tudo na história, principalmente a dúvida que fica até ao fim. Pareceu-me muito natural e ao mesmo tempo extraordinária. No entanto, aqueles pensamentos negros marcaram-me mesmo. Já em Así empieza lo malo, quase que dou mais valor aos pensamentos e à perspicácia do autor no que toca ao pensamento humano (cavando e cavando, procurando de novo o mais humano que temos) para aquele contexto. É perfeito, a forma como ele trabalha tudo – a História de Espanha pós-ditadura, que dizem os entendidos que é um retrato muito correcto (e que, para quem viveu nos anos 80 se pode tornar muito desconfortável); a história do livro, as várias histórias dos personagens, os enredos, o contexto, as curiosidades e dúvidas; e a história interior, os pensamentos de cada um, as decisões, as acções. Estão todos muito bem encaixados, fazem todos muito sentido. Em Os enamoramentos, os pensamentos e análises surgiam em conversas entre os protagonistas, enquanto que neste caso surgem quase espontaneamente com os passos seguintes que a História vai pedindo, e senti que eram menos forçados.

Portanto, dá para perceber que gostei muito dos dois livros, embora por razões muito, muito diferentes. Contudo, que Javier Marías sabe o que faz, que sabe como adaptar os seus vários talentos e construir livros que ora puxam por um lado, ora por outro – e que brincam sempre, a vários níveis, com o desconforto humano –, disso não há dúvida. Obrigatório ler, mas recomendo a sua intensidade de forma doseada.

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