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Ser forte para dizer a verdade…

Parece óbvio: é obrigatório encarar a verdade, do ponto de vista de quem a diz, como do ponto de vista de quem a ouve.

Hoje eu sei, contudo, que não me vinha preparando desde muito cedo para seguir um bom roteiro quando o tema é este; eu não me sinto como alguém que esteve a ensaiar para atuar numa peça cujo tema é a verdade. Nesta fase da minha vida – e talvez todas as pessoas tenham uma fase como esta – sinto-me a própria iniciante em um ramo profissional (uma novata aos 45, em muito parecidos aos 45 do segundo tempo de uma partida de futebol). Neste enquadramento foi que fiquei a saber que assim, com a verdade despachada sem rodeios, trabalha-se melhor. Diante de um cliente que nos procura para fazer negócio no ramo imobiliário, haja clareza sobre o que fala e frontalidade. Ponto final. Quem o afirma é Monique Howard, uma mulher dos Estados Unidos, cuja entrevista (disponível no Youtube) tem o título de “Winning as a single mom realtor – interview with the best – Monique Howard with Kevin Ward”. Ela deve regular comigo em idade, mais ou menos, é bonita, cheia, estava vestida com elegância na videoconferência (ou veste-se usualmente desse modo para trabalhar), está tarimbada pelo naufrágio de um casamento e por pelo menos duas crises pessoais e mais duas grandes tempestades no exercício da profissão, que ela abraçou sem a convicção mais firme do mundo. A profissão é a mesma que eu abracei há pouco, tímida e disposta a correr riscos, como sempre.

Quanto a mim, quanto a administrar a confissão das minhas verdades, se me volto para dentro e me esforço para organizar ideias e perceber se, afinal, tenho conseguido dizer bem as verdades dolorosas e mesmo as declarações mais agradáveis, vejo-me compelida a assumir que não; na maioria das vezes, não foi de ânimo leve que eu abri os olhos de outras pessoas acerca de um ponto; não foi, muito menos isso, não foi de peito aberto que eu o fiz. Eu não queria dizer a verdade, apenas tinha de o fazer e cumpria a tarefa, sim, porém com muito pesar.

Um dia coube-me a mim dizer a um amigo – e era um grande amigo – que eu não me sentia capaz de continuar a tentar apaixonar-me por ele. Estávamos a atravessar uma experiência sem muita conversa e com alguma coisa subentendida. Estudáramos na mesma turma, ao longo do primeiro ano de faculdade, tínhamos estado a sós para preparar trabalhos escritos, tínhamos ido comer, tínhamos ido beber, eu tinha cruzado alguns limites meus à frente dele, eu tinha deixado que ele comentasse o que via em mim, quando eu surgi-lhe completamente vulnerável. Contudo, era em silêncio, era sozinha que eu sabia que não me era possível esconder a minha verdade por muito mais tempo: mais do que amigos não poderíamos ser, porque eu não estava realmente inclinada ou pronta. 

Lembro-me desse casal improvável de que eu fui parte na maior estação do metrô da cidade de São Paulo, calmos como sempre, ele e eu; e na hora da despedida, eu admiti. Fui eu que chorei e o meu embaraço misturado a sofrimento – porque eu o faria sofrer em seguida – não escapou ao meu amigo. Tentando me consolar, ele me contou que nunca tinha acontecido de ser “dispensado” por alguém que falava e chorava ao mesmo tempo.

Bolas, que raio de desempenho. Eu poderia ter deixado para chorar depois de a decisão ter sido comunicada… Eu poderia ter brincado com a situação (que não era muito fácil mesmo), eu poderia ter feito uma introdução diferente, eu poderia ter colocado uma carta entre as mãos dele.

No entanto, eu chorei e me despedi dele e da experiência. Nenhuma câmera de vídeo desses programas televisivos atuais que testam a atração (a “química”), o respeito, a compatibilidade de casais filmou o momento da minha desistência, não havia contrato escrito para romper nem outro tipo de cerimônia em curso. Eu gravei o episódio na cabeça. Memorizadas várias cenas anteriores e várias falas do meu amigo, essa em particular ficou retida aqui dentro, pois eu sei o quão difícil foi revelar que eu estava no limite, que eu não gostava de ter chegado até aquele estado.

Em outras situações de mesma natureza, eu lidei miseravelmente com a obrigação de dizer a verdade, tanto que quase não disse a verdade a mim mesma. Nunca me esqueço de outros rompimentos anunciados por mim e reconheço que me custa muito abandonar, deixar ir. A verdade não aflora, aliviando a pressão de um relacionamento disfuncional. Eu conto uma história terrível a mim mesma para justificar o ponto final, como se eu fosse personagem numa história de outro(s), como se eu estivesse presa por um autor desconhecido. Em criança, ao contrário, contar histórias era incrível apra mim! Mesmo que o enredo não mudasse – eu falava em voz alta sempre a mesma lengalenga -, havia um prazer enorme em representar, eu assumia o comando, e eu dava colinho a uma boneca – havia sempre uma boneca comigo, ela ia embaladinha, esquerda e direita, esquerda e direita, minha companheira. 

E por que eu perdi o jeito para fazer declarações, quando o que repousa aqui dentro é bonito e é meu, afinal?

Culturalmente, talvez tenha sido difícil aceitar alguns traços, talvez seja embaraçoso, quando se é preparada para ser “boa-moça”, dar vez e voz à contadora de histórias, à mulher emocionalmente forte e viva, que tem o que dizer e quer afirmar(-se) e ouvir alguma coisa em retorno. 

No ambiente escolar (o que eu conheci é muito diferente, por exemplo, do que o meu filho encontra cá em Portugal, que é muitíssimo diferente daquele com que algumas pessoas sonharam, depois de ler Gianni Rodari falar sobre a herança de Reggio Emilia!), costuma-se ensinar ou encoraja a manifestação justa e equilibrada? Seria um ambiente maravilhoso para que aprendêssemos a nos expressar com alegria, com serenidade, com argumentos de peso, com abertura para ouvir, com alguma teatralidade brincalhona, que honrasse o poder que as palavras nos conferem.

De casa, o que falar? A 4ª filha, seguida por um único rapaz, tem um lugar que talvez seja o da diplomacia, o da provocação serena. Eu me lembro de ocupar esse lugar, até entre adultos, como lembro também de abdicar dele, toda vez que o interlocutor era demasiado conflituoso. Nem todas as pessoas estão de acordo com uma conversa mais bruta, nem todas querem rir (o seu sorriso amarelo) diante da troca de farpas! Há quem tenha munição, mas prefira, como eu, um contexto mais franco para quem sabe ser varrido pelo aparecimento de uma verdade desconcertante, se for o caso. Há quem prefira silêncios longos. Há quem goste e saiba contornar uma entrada menos delicada, uma achega mais grosseira a um determinado assunto, com o humor.

“Não sou eu quem me navega”, como diz o queridíssimo Paulinho da Viola… no mar que vem dar à minha costa eu sinto que finalmente volto a dar umas braçadas mais vigorosas, para de vez em quando – cada vez mais -, poder boiar sem reclamar da maré. É escusado fugir da responsabilidade de dizer e dizer bem, melhor aproveitar aquilo aquilo que sabemos para dar o nosso recado e ostentar a nossa marca. Ainda é de graça, não é? A fazer coro com vozes carregadas do que eu prezo: verdade, coragem, graça, ainda consigo ser eu mesma e ter histórias para contar.”

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