Se me ouvisses

Se me ouvisses saberias de mim, do que não digo por não saber as palavras, do que não faço por não conhecer os gestos, do que não danço por não conhecer a melodia. Saberias que não me falta coragem, apenas a desaprendi por falta de uso. Saberias que me doem os lugares onde não entrei por medo de não caber, todos, um a um. Que me arranham ainda as paredes onde rocei trémula e que é só o corpo que entrego aos lugares onde estou, ao barco que me leva para a outra margem, à cama de onde descodifico o mundo. Se me ouvisses saberias que na maioria das vezes não estou, alguém se apropria de mim, dos meus gestos, até da minha voz. Eu sempre em outro lugar, em tantos lugares. Saberias que a vida não me deve nada pois veio sempre inteira, com todas as possibilidades, mesmo as que me foram negadas. Saberias que a palavra dura que me escapa por entre os lábios não tem eco no peito, antecipadamente ferido de culpa. Se me ouvisses saberias que um colo, qualquer colo que me acolhesse em pleno demónios e virtudes, calaria em mim todas as dores do mundo.

Se me ouvisses saberias do carinho imenso, porém inútil, que tenho pelos outros com os seus olhinhos infantis de imenso desamparo, o mesmo de que padecemos todos. Saberias do perdão que recebe sempre quem me magoa, ainda que o não diga, que o meu rosto se endureça, que os meus lábios se cerrem e que na minha testa se forme uma onda. O perdão chega antes de mim e nele não tenho mando. Eu, atrasada e ofegante, não vou a tempo de o deter, como às vezes parece sugerir a parte da ferida em carne viva. Descobri que muitas vezes o que me sai em gentileza é para não magoar os outros da mágoa de me terem desiludido. Poucas coisas doem mais do que a morte de uma ilusão. Se me ouvisses saberias que raras vezes sei o que sinto até a pele começar a romper numa tentativa de palavra, e então ela vem, uma erupção aqui, uma erupção ali, até que o desenho se completa e entendo.

Se me ouvisses saberias o quanto aprecio as delicadezas pequeninas, sempre as pequeninas. Se me ouvisses saberias que ainda não entendo as vírgulas, confundo-as com pontos finais, por isso parto fora de tempo. Saberias que às vezes, por covardia, não aceito os pontos finais, troco-os por as virgulas e por isso fico tempo demais. Ah, esta dificuldade em lidar com o tempo. Saberias que só é possível conhecer-me pelo avesso, único lugar onde verdadeiramente sou. Saberias do meu cansaço pela constante busca, do tão insuportável que é para o meu coração estar inquieto assim como é estar em paz. Saberias que as raízes que insistem em prender-me ao solo estão por um fio, de tão frágeis. Num dia a vontade de levantar voo, noutros uma vontade de descansar na pedra. Se me ouvisses saberias que a toalha que me seca o rosto matinal é a mesma com que limpo a dor de viver. E dói tanto às vezes. Como queria ser a mulher inteira que indicam os números, ter todas as respostas e silenciar em definitivo as perguntas.

Se me ouvisses saberias que me doem os meus pais. Envelheceram, um para lá da linha de água, outra a aproximar-se da margem. Se me ouvisses saberias o quanto rompeu a pele da primeira vez em que voltamos a sorrir sem ele, nessa orfandade a estrear, não pelo riso, mas pelo “sem ele” e pelo rosto imóvel da moldura. Mãe, promete que não morres nunca, tu que tanto me faltas se apenas te demoras. Julgo que nunca me recuperei do cordão ensanguentado a descolar-se de ti, da palma que deixei de te estender ao atravessar a rua, do colo onde deixei de caber por ter crescido. Mesmo quando tiveres de morrer, promete que ficas, que ficas e me ensinas sem pressa como se faz sem ti.

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