Ser escritor, nos velhos tempos de charme, era ser alguém que, inegavelmente, tinha talento. Mais do que isso, era habitualmente uma pessoa com uma personalidade vincada, de grande cultura, a quem muitas vezes se permitiam excessos e excentricidades pela sua genialidade.
Com a democratização da escrita, pelas redes sociais, o uso da palavra escritor, como o verbo amar, tornou-se algo corriqueiro. Qualquer pessoa que escreva alguma coisa, chama a si o substantivo, sem pejo nem cumprimento do que consideramos ser um escritor. Há quem considere que escritor é todo aquele que escreve. Parece-me poucochinho. Nem toda a gente que cozinha é cozinheiro, e parece-me imprescindível distinguir aqueles que o fazem de forma artística, com qualidade e esmero, daqueles que apenas libertam emoções, como se distinguiria um cozinheiro extraordinário daquele que apenas cozinha no seu lar, de forma costumeira e repetitiva.
Tenho muita cautela com a palavra. Não quero iludir, nem quero falhar com ninguém. Cuidadosamente uso a palavra autor. Um excesso de pudor, talvez.
Com o surgimento das vanities, as editoras que a troco de pagamento, mais ou menos explícito, publicam quase tudo, acordaram em catadupa todos aqueles que têm um sonho de publicação. Haverá as que têm assistentes competentes, revisão de textos e aconselhamento, mas há as que querem apenas salvaguardar a venda de exemplares pelo próprio autor, à conta deste, com o marketing e o esforço editorial deste, remetendo-se apenas para o recebimento de receitas.
O mercado editorial, formal e reconhecido, tem dificuldade em receber novos autores. O acesso a estas editoras, pouco mais do que agências de impressão, são muitas vezes a única hipótese de se fazer notar nas fileiras de autores esforçados mas não reconhecidos.
Isto é perigoso, sobretudo num mundo de egos carentes ou inflamados. Quantos se empenham em prol de um sonho de edição, de verem a sua obra impressa, o seu nome impresso, na expectativa de vingarem no meio, e concluem que apenas despenderam dinheiro, venderam alguns poucos exemplares aos familiares e amigos, mas o sonho ficou por aí? Quantos reduzem esse momento a olhar o livro na estante de forma carinhosa, ou mesmo orgulhosa?
Além destes bem intencionados, há os outros, os de ego inchado, que acham que só não merecem a lua porque até nem cabe na varanda lá de casa, e se gabam, usufruindo do desconhecimento do público em geral relativamente ao pagamento para edição, que já publicou 10 livros. Sem revelar jamais esse detalhe, equiparam-se a um Lobo Antunes, a um Saramago, embora no fundo se roam do reconhecimento que não tiveram pelas vias formais.
Existem também uma série de antologias ou colecções de índoles várias. Em inicio de carreira, é muito sedutor conhecer outros autores, e ver o seu poema ou texto publicado, integrar-se no meio. Mas rapidamente se aprende a distinguir o trigo do joio, e mais dia menos dia, percebemos que há quem ande literalmente em busca de uma receita extra patrocinada pelo trabalho de autor alheio, sem qualquer trabalho criterioso de selecção ou aconselhamento. Ganhei uma amiga a quem considero muito, quando em determinado concurso me disse que o meu texto excedia em 2 versos a formatação. Não se limitou a aceitar, como outros que em 10 minutos me responderam que fora aceite, num excesso de democracia literária, sendo indiferente a qualidade do trabalho entregue. Ninguém se pode sentir lisonjeado ou apreciado se tudo é aceite. Como se valoriza a ausência de critério, permitindo tudo, do muito mau ao muito bom. Apreciei muito mais a crítica, porque significa que leu. Porque significa que se importa. Porque me deu opção de corrigir o dano.
Muitas vezes, estas edições são apenas o primeiro passo. Quando há talento, será apenas o primeiro. Exemplo disso é Alice Vieira, que, em 1964, com 20 anos, pagou uma impressão numa gráfica da obra De estarmos vivos. Seguiu-se a carreira que todos lhe conhecemos, como escritora e jornalista, e recentemente foi feita um reedição da mesma, pela In-finita, autorizada pela Leya, que tem a exclusividade da autora.
No outro dia, em conversa de café, alguém dizia que é muito difícil dizer a um ego inflamado, quem participou em 30 antologias e editou 10 livros em vanities, que de facto não percebe nada de escrita. Crendo no sonho que ele próprio pagou, esquecendo-se de como o conseguiu, acreditando de forma narcisística na sua grandeza astronómica, é-lhe impossível ouvir uma crítica de forma pacífica. Incapaz de ver as suas próprias misérias, reage com brusquidão ao idiota incapaz de reconhecer tamanho talento, quando não o considera um invejoso que o tenta boicotar, ainda que seja a pessoa mais profissional e isenta do meio editorial. Pois se tem um currículo destes, obviamente que é um escritor. Poderá não o ser, pelo menos considerando a qualidade intrínseca. Poderá ser apenas um mau escritor. Pior, alguém com uma soberba que o faz menosprezar terceiros, e se acha superior a críticas ou considerações.
A minha madrinha usava muitas vezes a expressão: presunção e água benta, cada um toma a que quer. Parece-me que se aplica perfeitamente. Talvez precisemos que alguém nos classifique, nos considere, e não tenhamos que gritar ao mundo o que achamos que valemos, porque se for verdade, notar-se-á, é intrínseco à qualidade do que geramos. Mais cedo ou mais tarde.
A melhor maneira de lidar com os outros é tomá-los por aquilo que acham que são e deixá-los em paz.
– António Lobo Antunes
Ouso acrescentar : E deixar-nos em paz, também a nós…