Tudo começou com um novo projecto. De repente, as preocupações extravasaram o período de trabalho, e invadiram os meus dias e as minhas noites. Durante as minhas actividades regulares e diárias, lá estava ele, plantado com raízes profundas no meu cérebro, ocupando os meus circuitos mentais com imagens de monitores, sequências de desenvolvimento, procura de meios para retratar a realidade numa nova aplicação informática. Estas imagens surgiam sem controlo, sem consideração por horários, locais ou pessoas presentes. Dava por mim a pensar no assunto enquanto conduzia, enquanto apanhava a roupa no estendal, enquanto as pessoas em meu redor conversavam animadamente.
Contudo, o pior estava para vir. Nesta fase, pior que os dias de stress, eram as noites em claro. Comecei por acordar frequentes vezes e, em todas elas, a minha mente estava a pensar no projecto. Depois, os períodos em que estava acordada começaram a estender-se, sendo cada vez maiores, tendo havido noites em que dormia as 2 primeiras horas, mas não mais, permanecendo horas acordada, enquanto todos dormiam, levantando-me para beber um chá ou leite quentes. Era desesperante estar cansada e não conseguir dormir, pela noite em si, mas pelo antecipar de dificuldades em levar o dia seguinte adiante. Até ao dia em que acordei, pelas 3 da manhã, com uma dor de cabeça terrível, como se tivesse um torniquete a pressionar-me vigorosamente as têmporas. Nenhuma medicação minorou sequer, a dor, e ao fim do dia alguém sugeriu que medisse a tensão arterial e fui surpreendida com 15 de máxima, que no meu caso raramente passa dos 12. Já não bastava eu sentir-me aquém das minhas capacidades, como se de repente estas tivessem ficado bloqueadas no nevoeiro, sem poder utiliza-las na sua plenitude, agora tinha também um sintoma físico. Já não era só a minha cabeça. Assustei-me.
Fui ao médico, que rapidamente me receitou comprimidos para dormir, ansiolíticos, mas sobretudo repouso. E eu, indecisa entre a necessidade óbvia de descanso e o abandono temporário do projecto, deixando pendentes assuntos importantes, recebi do meu superior hierárquico o melhor conselho: vá uns dias para casa e trate de si. Eternamente grata pela consideração. À minha volta, amigos e familiares mais próximos, denotavam preocupação. Eu, sempre cheia de iniciativas, ideias, interesses, em casa com exaustão? Como assim?! Fui 3 dias para casa, mas continuava sem dormir, pelo que o meu médico assistente achou que poderia ser uma crise de ansiedade e sugeriu que eu consultasse um psiquiatra.
Consultar um psiquiatra está ainda hoje cercado de preconceitos. Erradamente. Por um lado, tentando não dramatizar, houve quem sugerisse que um psicólogo seria suficiente. Outros, que o psiquiatra me doparia e que andaria noutra dimensão. Outros ainda que me alertaram para a dependência química da medicação. Outros que achavam que se eu fosse forte(?), ultrapassaria a questão, que não podia ceder. Esta resistência ao psiquiatra é preocupante, sendo que ninguém diz a quem lhe dói o dente que não deve ir ao dentista, ou que tenha medo dos efeitos secundários da anestesia, ou que dará parte de fraco por não resolver por si só o abcesso que tem. Por isso, lá fui.
Em meia dúzia de frases, longe do romantismo do sofá e das conversas filosóficas, respondendo a algumas perguntas que com a minha habitual desenvoltura para a conversa, ela determinou: BURNOUT ou TAG – Transtorno de Ansiedade Generalizada. Esta situação ocorre quando o paciente tem um nível excessivo de preocupação e ansiedade com determinado assunto, dificuldades de concentração, tensão muscular e perturbações do sono. Recordei os pensamentos constantes, a quebra de rendimento mental, as pernas e os braços que pareciam ter perdido firmeza, e claro, o pior, as insónias. Esta perturbação é mais sentida por pessoas perfeccionistas e multidisciplinares, que querem fazer tudo e nada falhar, e pessoas com sensibilidade à flor da pele.
Sou resistente à medicação, pelo que me debati com a psiquiatra, procurando alternativas ao antidepressivo, fazendo perguntas sobre efeitos colaterais, dependências e desmame. Acredito que não seja a primeira pessoa a fazê-lo, pelo que, sorridente e paciente, ela respondeu a tudo, e ainda me disse duas ou três coisas que achei importantes e me levaram a decidir embarcar na medicação: que o cérebro é um órgão auto determinado como qualquer outro, estômago ou fígado, e não é o pensamento positivo que o fará funcionar, assim como um diabético não produz insulina por achar que o seu pensamento a regulará. Obviamente que o pensamento é importante, mas somos químicos, e um cérebro desequilibrado precisa da sua insulina, no caso serotonina. Que o desequilíbrio que sofria não me permitia usufruir de todo o meu potencial, e isso eu sentia claramente, quando tenho interesses vários, escrita, voluntariado, etc, e me sentia no meio do nevoeiro, sem a habitual destreza mental. Sentia saudades da minha clareza mental, e temi não voltar a ser quem era. Para além da medicação, aconselhou-me a criar rituais de sono, evitar café, sal, doces à noite, fazer caminhadas ao ar livre, para ajudar na indução de uma calma interior. E ainda nos rimos um pouco, contando que a minha paciência para 3 crianças adolescentes estava menor, o que ela disse que isso não era sinal de doença minha, era só sinal de crescimento deles.
O Burnout foi reconhecido recentemente pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como doença profissional, sendo definida como “uma síndrome resultante de ‘stress’ crónico no trabalho que não foi gerido com êxito”. No entanto, esta definição só será aplicada a partir de 2022.
Estou ainda em tratamento, mas acho que foi a melhor opção. Por um lado, ando bem mais calma sem andar dopada, e percebo, com a clareza que não tinha antes, que a vida é composta de fatias, como a família, os amigos, o trabalho, o lazer, e todos eles devem preencher o nosso espaço cerebral, e não permitir que um se sobreponha, de forma monopolista e doentia sobre os demais. A situação que vivi foi como se numa pizza 4 estações eu só me concentrasse numa delas, obsessivamente, descontroladamente, e não conseguisse vislumbrar o resto. Obriguei-me a abrandar, até porque preciso estar em óptimas condições para fazer tudo o que quero fazer e inventar, tenho uma vida a viver.
Saber pedir ajuda é para os fortes. Sem vergonha de o fazer, porque sabem que são bem mais do que a miséria em que se encontram no momento. São mais do que um corpo e mente colados a cuspo, adiando corajosamente a queda no abismo da desconjunção. Bem mais que o desespero que vivem. E ao pedir uma mão, iniciam a escalada de volta ao seu esplendor maior. Sem pejo, nem medo, só garra, e alma reanimadas.
Cuidem de vocês, e sejam a melhor versão de vós mesmos.
Os termos “burnout” e “desconjunçāo” afirmam que a decisão que tomaste foi a mais certa… para ti. Para mim não existe “burnout” de uma pessoa. (soa-me a uma pictorice de Elton John com pretensão a termo técnico e que na realidade do povo refere-se ao desperdício que alguns jovens fazem com os pneus dos seus veículos) Nós somos tão mais que essa teimosia de má materialização do que ainda não entendemos pêva.
Eu sinto-te água cristalina, Sandra e é tão difícil sê-lo em Terra tão suja quanto esta em que ora vivemos. Água mistura-se em rio e depois mar ou… evapora.
Todos os conselhos que te deram são verdadeiros, válidos.
Nós somos omnipotentes e só a vontade nos determina. Escolher entre fidelidade e “felicidade” é no entanto debilitante sem dúvida. A salvo estão só os que não tem dinheiro.
Não será a dificuldade crescente face a uma situação uma forma velada de revelação inequívoca de quem somos?
.Serás rio a seu tempo. Tens todo o tempo desta vida.
Come, dorme, ora e uma rápida… recuperação é o desejo de quem é grata margem de ti.
Muito obrigada por tudo. O apoio de que me lê tem sido fenomenal.