Óscar para a Netflix! – A estocada final

Em pouco tempo este texto estará desactualizado.

Em pouco tempo, não estranharemos ver um filme receber o Óscar de Melhor Filme sem ter estreado em qualquer sala de cinema do mundo que não na meia dúzia obrigatória nos Estados Unidos para o tornar elegível para os Óscares. Se o resto do mundo quiser vê-lo, somente o poderá fazer assinando a Netflix. Passarão então de ser os prémios da televisão e não do cinema.

Sendo amante de cinema sem deixar de desfrutar dos filmes em casa, não confundo as duas experiências: mesmo com o último grito de definição de ecrã, sistema de som Dolby-Surround SURDIX-XPTO, e todo o piso térreo da vivenda dedicada a imitar uma sala de projecção, ainda assim, por muito que nos esforçássemos, não conseguiríamos replicar a experiência que constitui uma ida ao cinema. Como um dia a Sónia me disse enquanto jantávamos numa tasca da Avenida, “ir ao cinema é um acto social”. E quanta verdade cabe na sua afirmação… não é replicável a magia de uma sala de projecção, o apagar das luzes e a respeitável distância de onde veneramos o ecrã: é isto e muito mais que concorre para uma outra apreciação do filme. Como se nos fosse oferecido um lugar privilegiado para viver uma obra de arte em perspectiva, muito diferente da “sala lá de casa”. Depois, há tudo o resto que compõe um “acto social”… como é possível replicar em casa as gargalhadas partilhadas lado a lado com um desconhecido ou o equivoco final que sentimos quando as luzes se acendem e despertamos de um sonho, acanhados por expor a nossa reacção entre estranhos?

Em pouco tempo será normal um filme de TV vencer um óscar. Podem então acabar com os Emmys e matar de vez o cinema. Sem vergonha: assumir que o que queremos são as plataformas digitais e a “sala lá de casa” convertida no último reduto para podermos ver um filme, não cinema.

Em pouco tempo, os “amantes de cinema” serão apelidados de “puristas”, para daqui a quatro ou cinco anos, quando carimbados com o rótulo de “fora de prazo”, serem enxotados para as salas de reposição alimentadas por amantes da 7ª Arte – verdadeiros heróis – e festivais de Verão com cinema ao ar livre. As salas cingir-se-ão então à ficção científica, acção e super-heróis.

A indústria do Cinema não está isenta de culpas: ao permitir a fuga dos argumentistas para a televisão e crer que só com efeitos especiais as experiências se diferenciariam foi, sobranceiramente, deixando morrer a sua própria essência.

No entanto, maior do que a questão dos argumentistas, são as assinaturas de streaming, pay-per-view, etc… e torna-se mais grave quanto Portugal é um país com uma paupérrima produção cinematográfica, mascarada em parte pelo facto de não termos massa crítica para rentabilizar a indústria, mas por outro lado, há que admiti-lo, por serem muito poucos aqueles que gostam de cinema, e esses, têm que se virar para encontrar salas que passem filmes fora do mainstream com regularidade. Em Lisboa ainda é possível; quanto ao resto do país, vale a pena falar?

Em pouco tempo rir-se-ão deste texto (se não estiver já a acontecer), mas ser progressista não se resume a acatar com dormência toda a tecnologia e modelos de negócio em detrimento das experiências que nos fazem felizes. Argumentam-me muitas vezes que “é o mercado a funcionar”. Deixemos então a Arte apenas entregue ao “funcionamento do mercado” e aqueles que pertencem a nichos com gostos um pouco desviados dos da maioria, deixam de ter o que ver. E assim se acaba com a diversidade na Arte.

Resolvi “fazer-me um ser do meu tempo” e entrar no maravilhoso mundo tecnológico: todos os filmes da Netflix que me interessam e que a plataforma não permite a visualização numa sala de projecção (e para a qual eu estaria disposto a pagar os sete euros do bilhete), vê-los-ei na net, sem despender um cêntimo (há que ser tecnológico!). Torno-me então num tipo moderno, atrasando ligeiramente a morte da Arte que há mais tempo me apaixona.

Em pouco tempo, ultrapassei a Netflix.

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