No forno estava a lasanha de carne, coberta com especiarias e, no lugar das placas de massa, uma berinjela fatiada. Faltava ainda 15 minutos para a iguaria estar pronta. À mesa, os meus anfitriões, egípcios, debatiam a religiosidade dos portugueses comigo – agnóstica, com o Egipto impregnado na minha pele e na minha alma, amante de culturas, de diferenças e de pessoas em lugares distantes. O tema fez-me sentir desconfortável, pois não possuo conhecimento aprofundado sobre nenhuma religião em particular. “Somos maioritariamente católicos, mas eu não faço parte dessa maioria”, lancei.
As diferenças não me assustam, pelo contrário, interessam-me, e eu sabia que éramos diferentes: afinal, à minha frente, estava uma família de egípcios, muçulmanos, crentes em Deus, mas abertos ao mundo e às diferenças, tal como eu. “Sabes que o islão é muito mais que uma religião, é a nossa forma de vivermos, de encararmos o mundo, a nós próprios e a Deus”, lançaram eles, com um sorriso, à espera de uma torrente de perguntas. Assenti, também com um sorriso, pedindo que explicassem o que queriam dizer com “uma forma de viver”.
Começaram com a desestruturada sociedade do Egipto, das diferenças catastróficas entre o 1% da população rica, com acesso a tudo e mais alguma coisa, em contraste com os restantes 99% que continuam sem acesso a quase nada, com escassos recursos, pouca educação, vivendo de tradições que põem em causa a maioria dos direitos humanos. Falámos da má interpretação que os fanáticos e tantos outros fazem do islão e do Corão, espalhando mensagens que não são verdadeiras e não estão escritas em lado nenhum. Contudo, o que mais me fascinou foi a leveza com que me foi explicado um dos principais objectivos do Ramadão e a tal “forma de viver”: “Sabes que as famílias com mais rendimentos são obrigadas a doar, todos os anos, uma parte da sua riqueza (pelo menos 2,5%) aos mais desfavorecidos e a comida que fazemos durante os dias de celebração do Ramadão – e diariamente – é também para os que mais necessitam?”.
“Mas como é que sabem que essas doações e essa comida vão realmente para os que necessitam e não para qualquer outra pessoa que, na verdade, não precisa assim tanto e só vos está a enganar?”, questionei, como se tivesse encontrado um furo num tecido perfeito.
“E o que é que isso importa? Eu dou o que tenho. Isso é entre mim e Deus. Agora, se a pessoa que vai receber a minha comida não a necessitar realmente, então, isso já não é da minha preocupação, isso é entre essa pessoa e o seu Deus. Eu fiz o que tinha de fazer, não me vou preocupar sequer com uma hipótese ou suposição que tem por base a desconfiança no mau carácter. Eu faço-o por Deus”. Não consegui discordar. A verdade é que, de acordo com a religião islâmica, esta doação da riqueza chama-se zakat e é um dos pilares do islamismo. É obrigatória, pois considera-se que o zakat purifica o coração da ganância. Os seguidores do islão, tal como os meus anfitriões, acreditam que o amor pela riqueza é natural e é preciso uma crença firme em Deus para uma pessoa se desfazer de parte de sua riqueza.
Ainda assim, estas pessoas que olham para a sociedade de uma forma crítica, questionam as decisões do seu governo, a cultura e legislação de outros países, nunca colocam em questão o bem que é feito para o bem comum ou para Deus. E a pergunta pairou na minha mente: “Afinal para quem fazemos o bem? Para nós? Para os outros? Para Deus?”.
Imaginei, por momentos, como seria este princípio aplicado a Portugal? Resultaria? Talvez sim, talvez não, mas o que mais me fascina em tudo isto é o facto de eles se mostrarem tão despreocupados com o que acontece, afinal, a esta percentagem e à comida que doam. Como conseguem? Será pelo seu sentido comunitário e sentimento de compaixão já estarem tão enraizados no seu íntimo que não é sequer posto em causa? Ou será pela relação bem resolvida que mantêm com o seu Deus?
De qualquer das formas, não me surpreende, pois os egípcios com que me cruzei – em Portugal e no Egipto – são naturalmente generosos. As experiências guardadas na memória e que ainda hoje me arrepiam a pele lembram-me de uma cultura do bem, uma sociedade profundamente agradecida pelo que Deus lhes proporciona, mas, essencialmente, um conjunto de seres humanos com uma componente espiritual bem desenvolvida e um sentido de comunidade indubitavelmente enraizado.
Obviamente, existem excepções, mas, de uma forma geral, as experiências, sobretudo no Cairo, fizeram-me entender que podemos correr o mundo em busca das diferenças, das semelhanças, das tradições culturais, do uso da linguagem, da ideologia, das decisões políticas de cada povo, mas nunca entenderemos por completo um ser humano sem percebermos o que o move, qual a sua crença, o que o faz ser melhor e praticar o bem. É por ele próprio? Pelo outro? Por Deus?