Por algum milagre que nem me atrevo a questionar, nas duas primeiras semanas de Outubro esteve um tempo maravilhoso para praia, o que me permitiu observar mais uma vez um fenómeno em que já venho a reparar há uns anos e a que chamo “a praia das mulheres”. Ir para a praia ao fim do dia e principalmente a partir de Setembro, dá-me uma paz de espírito difícil de pôr em palavras. A sensação de estar longe de tudo, só a ouvir o mar, com o meu livro ou às vezes sem fazer nada, e principalmente com pouca gente à volta, é algo que me lava a alma. No fim do Verão corro para a praia sempre que posso, sempre com medo de que “este” seja o último dia em que o consigo fazer, e de cada vez que me venho embora, fico um pouco mais a olhar para o mar. Lembro-me de ser criança e de dizer à minha mãe “só mais uma ondinha”, que acabavam por ser mais umas 20, e de entretanto perceber que todas as crianças pedem “mais uma ondinha” quando estão a ser mandadas sair da praia. Quando estou ali a olhar para o mar, antes de vir embora, algo muito antigo em mim diz “só mais uma ondinha”.
Com o tempo percebi que não sou a única. A praia ao fim do dia no fim do Verão enche-se de mulheres, todas sozinhas, todas com o mesmo ar de quem precisava mesmo daquele bocadinho só para elas. É que ao contrário do erro comum, as mulheres gostam de sossego. Aliás, precisam de sossego. Uma vez um conhecido falava-me da mãe dele, senhora nos seus sessentas, mãe e avó e uma daquelas matriarcas que impõe respeito que tinha na cozinha a maioria da sua vida, os seus livros e a sua televisão. Esse conhecido explicava-me com frustração visível, que a sua mãe nunca ia deitar-se cedo. Tivesse ou não coisas para fazer, após toda a gente se deitar, ela ficava acordada na cozinha até às duas da manhã. Percebi imediatamente, mas não lhe quis explicar. Soube muito bem que aquela era a única hora do dia em que esta senhora era ela própria e não a Mãe ou a Avó. Em que não iam entrar pela porta um de quatro adultos e três crianças a pedir qualquer coisa, a ter fome, a ter sede, ou simplesmente a interromper os pensamentos dela. Aquela senhora sabia muito bem o que fazia.
Aquela senhora somos todas nós na Praia das Mulheres.
A maioria são mulheres de meia-idade ou mais, mas por vezes chega uma mais nova. Num dos últimos dias que lá estive chegou uma rapariga que aparentava estar na casa dos 20. Chegou por volta das 18h, o que para Outubro significa que já não há muito mais tempo útil de praia, mas a temperatura estava quente e a maré baixa. Chegou a falar ao telemóvel, mas assim que pousou as coisas, desligou o telemóvel, tirou o vestido e mergulhou no mar. Voltou com ar renovado. Noutro dia, uma senhora mais velha comia uma refeição com talheres de dentro de um Tupperware. É que estas senhoras também não se tratam mal.
Isto não quer dizer que não apareçam homens na praia nesta altura, ou até algum casal. Já reconhecia um casal idoso que aparecia com o seu cãozinho, sem dúvida para aproveitar o fim das restrições da época balnear. Mas estão em larga minoria. As toalhas individuais ocupadas por senhoras a uma distância significativa umas das outras, porque a distância é um factor importante para quem quer ser deixado em paz, são a regra na praia por esta altura.
Imagino-nos como uma espécie de irmandade silenciosa, que sem nos conhecermos, estamos ligadas por um objectivo comum e que se algo acontecesse a uma de nós, todas as outras entrariam em acção. Um pequeno exército de gente que não se conhece. Discretamente vou deitando o olho à senhora extremamente grávida à minha esquerda para me certificar que ela não se sente mal com o calor. Vou olhando para as coisas deixadas sozinhas enquanto a sua dona foi dar um mergulho. Gosto de pensar que fazem o mesmo por mim. Afinal estamos ali todas para o mesmo.
Durante o resto do ano sinto falta da minha irmandade. Mesmo que não conheça nenhuma delas e para o ano não sejamos as mesmas, durante um fim de tarde de calor tivemos muito em comum.