Os livros

As palavras dela não podiam ser mais simples. O que diziam é que o atirou para o interior de um labirinto e alterou as suas vidas por completo. A doença, o olhar no fim.

No leito da espera, quando sabia que tinha perdido a batalha para o tumor, o olhar dela focou-se no homem perdido que lhe amparava as dores. Ninguém se prepara para a morte porque ninguém sabe o que é a morte. Por isso a sua preocupação estava na sobrevivência dele que, ao contrário de si, não sabia quando chegaria a morte.

– Amor, tens de ter coragem. A tua vida não vê o fim como a minha. Tens de a viver para ela fazer sentido. – Disse-lhe ela.

– Como dar-lhe sentido se viver uma vida que sem ti não faz sentido? – Retorquiu ele.

– Tem que fazer e irá fazer logo que encontres um rumo.

– Só me vejo a chorar. A não conseguir suportar a dor da tua partida.

– As lágrimas podem limpar-te os olhos, derrama-as. Mas logo limpa-as para que não turvem o rumo que tens de seguir.

– Que rumo, que rumo terei?

– Uma vizinha nossa, agora apenas tua, um dia emprestou-me um livro velho que jamais esqueci. É uma história que sempre me iluminou e fortaleceu. Procura-o, lê-o para dentro de ti. Vai-te ajudar

– Que livro? Que vizinha?

– Procura-a…

As últimas palavras foram derrotadas pelo silêncio quando ela sucumbiu ao peso da medicação que mais não fazia do que carregar a sua dor. Ela adormeceu e ele chorou. Nessa noite voltou a chorar quando soube que a senhora de negro a tinha vindo buscar. Chorou de raiva, chorou de dor, chorou de vazio.

Não sabe quando quantos dias passaram quando voltou a ver os raios do sol. Talvez uma semana ou apenas dois dias. Já não interessava porque agora via-se de casa em casa pelo seu bairro a tocar à porta de todos. Sem saber o que fazer, decidiu partir para a rua e procurar o rumo que ela lhe falou. Não sabia que rumo era mas já sentia ser benéfico para si o apenas querer descobrir aquele livro velho.

Todos o reconheciam. Todos simpatizavam com a sua tragédia. Por isso todos lhe abriram a porta.

Inicialmente julgou que seria difícil descobrir quem possuía o livro, até porque não sabia que livro era. Depressa soube, para sua surpresa, que muitos tinham algum dia a ela emprestado um livro. Sem saber que livro é, e perante o rosto e expressão de quem não sabe responder a algo decisivo, as pessoas foram-lhe entregando os livros velhos que tinham. Alguns deram-lhe cinco ou seis, outros uma torre de papel que ele cambaleante logrou levar até sua casa. Outros muito poucos, entregaram-lhe cinco ou seis, não livros mas caixas deles.

Num quarto sem uso da sua casa vazia como ele, empilhou os livros velhos de todos os vizinhos e organizou-os em pilhas irregular. Um a um pegou neles e todos os leu, na ânsia de se revelar a si o segredo que ela lhe deixou e a ele lhe daria visão para um rumo a seguir.

Passaram-se dias que se transformaram em semanas. Semanas que se esticaram em meses. Leu cada frase de cada livro. Por vezes emocionava-se com histórias de amores desencontrados. Assustava-se com contos de terror e palavras de sangue. Despertava a curiosidade com aspectos técnicos deste ou daquele assunto. Ganhava admiração por figuras de relevo da humanidade quando as suas biografias revelavam que eram também pessoas normais. Leu de tudo e de tudo leu.

E de repente, os meses de procura que foram meses de leitura encheram-lhe a casa e a alma. Na varanda olhou a pequena loja que se mantinha abandonada junto à calçada. Desceu e espreitou pelo vidro. Era perfeita. Indagou e não desistiu até conseguir ficar com ela. Limpou-a a fundo, montou estantes a toda a altura, colocou uma mesa no centro e uma pequena secretária num canto para si.

A inauguração do Alfarrabista do Bairro, contou com a presença de todos. Muitos compraram os seus livros de volta, alguns até os deram de novo para a loja. Ele sorriu. Tinha a loja cheia e o coração ainda mais preenchido. E mais importante, tinha naquele livro que ela lhe falou, mesmo saber qual era, encontrado um rumo para a sua vida.

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