A minha menina

Estaciono o carro em frente à praia. Deixo a música a tocar na rádio e abro a porta, só para sentir aquela brisa e aquele cheiro que tanta parte faz de mim. Acendo um cigarro e olho, impacientemente, para todo o lado. Depois, recosto-me e aprecio aquele momento. São raras as vezes em que aproveitamos o presente, o momento, o agora. Fecho os olhos e dou mais uma passa.

A minha menina é perigosa. Tem um ar melancólico que a envolve numa beleza estranha, misteriosa, triste. A minha menina tem um sorriso infantil e alegre, mas acompanham-na sempre uns olhos repletos de saudades. Quando lhe pergunto do quê, responde-me que sente falta do que não conhece, do que viu noutras vidas, do futuro que ainda não chegou.

A minha menina é uma filósofa.

A minha menina é uma mulher, mas trato-a por minha menina na mesma. Conhecemo-nos jovens, e parte de mim vive com essa imagem inocente que já nada tem a ver com ela, mas ao mesmo tempo tem tudo.

Abro os olhos. Saio do carro só para esticar as pernas e aproveito para apagar o cigarro. Aproveito para admirar o sol, o mar, a vida naquela manhã de segunda-feira. Às vezes, tudo parece perfeito e o puzzle encaixa perfeitamente, curiosamente, sem qualquer aviso prévio. Só acordamos, ou paramos para pensar, e tudo faz sentido.

Neste momento, estou nervoso porque vamos fugir. Mas é um nervoso bom! Porque a minha menina e eu vamos fugir. De ninguém, na verdade, porque não temos ninguém a quem dar satisfações; mas gostamos dessa sensação. Gostamos de imaginar que vamos ser fugitivos, sem destino, que vamos viver como nos grandes filmes e livros, onde tudo é possível. Sabemos que os filmes e os livros nos enganam, que os anúncios e o futuro prometem mais do que aquilo que existe, mas queremos acreditar. Escolhemos acreditar. E afinal, tal como tudo, o futuro é apenas uma miragem.

Ela chega com passos decididos. Nos últimos dias de verão, traz uns calções e uns óculos escuros. O cabelo cai-lhe nos ombros. Anda com decisão, com certeza, com calma. Sinto as pernas a tremerem só de a ver, só de saber que somos livres. Ela sorri para mim, enquanto se aproxima, e beija-me demoradamente. Depois, entra no carro. Como um cão bem mandado, entro também e arranco.

Olho para ela, para ter a certeza que não sou só eu a querer, que a decisão dela foi tudo mentira. Ela observa-me. Tira os óculos. Os olhos são loucos, perigosos e estão cheios de possibilidades.

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