“Aparentemente ninguém quer saber que a história contemporânea criou um novo tipo de seres humanos – o tipo dos que são postos em campos de concentração pelos seus inimigos e nos campos de internamento pelos seus amigos”
– Hannah Arendt
Assisti, recentemente, a uma conferência intitulada “O apoio da comunidade internacional ocidental a refugiados de países em conflito”. O interesse ultrapassa o facto de se tratar de um tema em voga nos meios de comunicação, mas também por ser um assunto que tem que ver com a minha formação académica e preocupações sociais. Afinal, vivemos no século marcado por movimentos massivos de migrantes.
Quem estiver familiarizado com a obra de Hannah Arendt saberá que tomei o título deste artigo de um texto dela. Hoje, uma vez mais, estamos perante um movimento massivo de pessoas que procuram refúgio no continente europeu. Não é a primeira vez e não será a última vez que grupos humanos se deslocam de um país a outro por motivações externas.
Naquele pequeno texto, que pode ser lido aqui, há um relato do que é ser refugiado, mas na primeira pessoa. Não se trata de um relato comovente sobre a vida de refugiado, é a reflexão sobre a condição de refugiado.
Estatísticas sobre os refugiados indicam que 69% são provenientes de apenas 5 países (Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Myanmar). De 27,1 milhões de refugiados1, 1,5 milhões de crianças nasceram já com esse rótulo.
No universo do que significa ser migrante, existe a divisão entre o imigrante e o refugiado/deslocado. Os teóricos concordam que o que se separa um de outro são as motivações em sair. Enquanto um emigrante sai da sua localidade com motivações internas, tal como ganhar mais dinheiro para ajudar a sua família, o refugiado/deslocado é aquele que se vê obrigado a sair da sua localidade por motivações externas, como a guerra ou eventos climáticos extremos. Enquanto uns podem regressar livremente aos seus países de origem, não se pode dizer o mesmo de outros; alguns, mesmo que possam regressar, não vão ter quem os espere ou local para ficar.
O que me fascinou na conferência que referi anteriormente foi o facto de 99% das intervenções se debruçarem sobre o apoio ocidental à Ucrânia sem se referirem a outros países onde o fluxo de refugiados é mais intenso do que na Ucrânia (1% adveio das questões da audiência). É, com certeza, um esforço de auxílio tremendo e exemplar do que é possível alcançar quando pessoas se unem num objetivo comum de ajuda ao próximo. E isto é motivo de orgulho!
O que se passou com esta conferência, que se propunha a refletir sobre a ajuda que é dada a refugiados provenientes de países em conflitos é revelador da nossa visão do mundo e de como o refugiado é imaginado e usado. Isto tem que ver com a classificação que fazemos destas pessoas e na forma eurocêntrica com que os tratamos. Esta classificação também é feita com qualquer outro migrante, como o caso do imigrante. Se, por mera casualidade, perguntarmos a alguém na rua sobre como idealiza um imigrante, ninguém o vai descrever como a Christine Ourmières-Widener. Ela não é simplesmente imigrante, é CEO da TAP. As representações sociais irão idealizar um imigrante como aquele que está em trabalhos pouco qualificados.
O que sucede com o imigrante, acontece com o refugiado. Há os refugiados que são bem-vindos (e ainda bem!) e há os que são potencialmente terroristas ou que entram ilegalmente por isso, têm que ser repatriados. São por demais conhecidas as notícias que deram conta da recusa em aceitar que navios atracassem em portos italianos, porque no seu interior estavam pessoas resgatadas no Mar Mediterrâneo ou, mais recentemente, do uso excessivo de força por parte das forças policiais espanholas em Melila.
24 de fevereiro é uma data que a todos é familiar, mas ninguém sabe dizer quando se iniciou o conflito no Iémen, que tem 80% da população em extrema vulnerabilidade; são diariamente noticiados bombardeamentos russos em cidades ucranianas, mas pouco se fala das investidas turcas em território sírio, com o intuito de eliminar o maior povo sem Estado (Curdos); ou dos bombardeamentos russos e israelitas na Síria. Os meios de comunicação silenciam as atrocidades (próprias de um regime apartheid) que o Estado de Israel comete contra o povo da Palestina. Da fraternidade dos países lusófonos, onde estão os mesmos apoios para os refugiados no norte de Moçambique, fustigados por grupos terroristas?
Isto revela uma das facetas do caráter instrumental como são usados os refugiados. Se são provenientes de países com valor estratégico para os países ocidentais ou que possam contribuir para o enfraquecimento de países com os quais não partilhamos valores, então podem ser barrados em fronteiras com exércitos a vigiar em cada lado da fronteira como aconteceu na Polónia e Bielorrússia; podem tornar-se mais visíveis à opinião pública ou dela ocultados.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que todos somos livres e iguais, mas existem uns mais iguais do que outros. E a culpa é nossa.
“[…] desde que a sociedade descobriu a descriminação como a maior arma social através da qual pode-se matar um homem sem derramar sangue; desde que passaportes ou certificados de nascimento e algumas vezes até recibos de impostos, não são mais papéis formais, mas factos de distinção social.”
– Hannah Arendt
Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico