Não concordo!

— Não concordo, acho redutor até. Abusivamente simplificado – disse a moça nova.

Paralisaram todos. O ar travado nos pulmões, numa orgia apneica, aguentava firme.

Entreolhavam-se sem dizer palavra.

Que despautério! Presunçosa, quem diria. Uma falta de noção. Coisas deste tipo eram pirilampos em ocos lugares que se sabem entre as orelhas. Assomavam-se pensamentos destes na tentativa de abafar a admiração pela leveza na que, pela soma dos anos, se torna a mais invejada das aventuras: a liberdade escarrada na opinião crua.

A moça nova servia-se de um gole de café e um biscoito de canela. Olhou o biscoito com uma prazerosa expressão, inclinando a cabeça. Uma validação ao alimento como se o próprio tivesse vida e carecesse de aprovação naquilo que era o seu propósito final. Uma vénia, por assim dizer. Já me ocorreu que se abanássemos com gosto a cabeça na validação de competência aos nossos semelhantes, como fazemos aos biscoitos que nos deliciam, o mundo era outra coisa. O biscoito não se pronunciou, manteve-se pregado ao indicador e polegar a aguardar o destino. E nesta porção de segundo poderíamos fotografar o mundo: existem os que são dedos e os que são biscoitos, alternadamente, por sermos todos, em circunstâncias diferentes, ambas as coisas. Os inanimados que carecem de validação e o movimento que valida. A bem dizer, a moça nova já nem tinha grande memória da opinião de há instantes. Quando largada sem violência desrespeitosa no trato, a ofensa estará do lado do ego. Existe tanto de falha nas formas das falas quanto nos ofendidos que as recebem pela assombrosa falta de competência em separar a opinião da pele.

— Quer um? — perguntou a moça.

E os olhos dos apneicos arregalaram. Como assim, quer um? A afronta sem a sensação de culpa! Nem pingo da vergonha cuspida nas bochechas! Nem umas rosas modestas, nada! Acuda-nos Deus. Ora que esta também está boa, sim.

O homem velho, a quem havia sido dirigida a opinião da discordância, atordoado pela novidade, gargalhou.

Está senil! – ei-lo, novo pirilampo.

A moça nova limpou a boca à pressa. Gargalhada como aquela só poderia ser por conta de migalhas nos lábios ou bigode em tom de café.

— Quero antes dois! — respondeu-lhe o homem velho já com os olhos brilhantes de entusiasmo. Não se lembrava da última vez que pessoa alguma teria tido a normalidade de discordar de si, banalmente, sem que isso acarretasse um medo infundadamente desmedido.

Era inteligente, culto, socialmente importante, um génio nas palavras com que o embrulhavam. São sempre os outros que nos embrulham, para o bem ou para o mal. Disto não nos livramos. Podemos achar-nos outra coisa qualquer, mas os outros serão para nós qualquer coisa que tenha a ver com a ideia que sobre nós têm. E ou nós somos bichos sós ou, se bichos amantes de convívio, custará. A tragédia deste embrulho perpetuado, ainda que pareça o rótulo de génio simpático, é a perda inevitável de estímulos da vida como é, por se esfumar a banalidade dos convívios. Desaparece a hipótese de uma discussão fervorosa, um discordar normal, um ponto de vista ridículo lançado por dá cá aquela palha.

Os outros coibiam-se de ser eles mesmos na presença do seu nome por carregar o embrulho do intelecto aclamado. O velho sabia-o, testou-o vezes sem fim. Chegou a escrever umas coisas banais, sem sentido, de uma pasmaceira agoniante e, por isso, longe de ser belo. Foi aclamado! Revirou os olhos e chorou ao perceber que nessa ovação ridícula, a maioria fê-lo por duvidar de si. Um pirilampo qualquer deveria emergir em todos simultaneamente: Alto! Se não aprecias o que diz o génio, tu é que não deves ter tido a capacidade de lá chegar. Cala-te, para bem do teu íntimo, e aplaude. Aquela merda não prestava, mas seguiu o mundo, não mudou nada. O velho sentia que poderia urinar do último andar, janela fora, que alguém se meteria lá abaixo para apanhar a arte. O que faz um génio num mundo destes, afinal? O aborrecimento tornou-se catastrófico, até ao dia em que a moça nova mordeu o biscoito e os fez engolir o ar. Renasceu a esperança de ouvir os leves perspicazes, os despreocupados das conversas simples, sem que se cruzem pensamentos de panos quentes por conta de suscetibilidades, egos, estatutos e interesses, que no final não levarão a nenhum lugar a não ser à perda de controlo dos esfíncteres a que estamos todos destinados. Por mais que sejam os traseiros lambidos.

O homem, velho, sabia que a beleza daquela discordância era coisa da juventude ainda não corrompida por interesses que não sejam a felicidade momentânea. Nesta altura precoce da vida, o mundo de dentro ocupa-nos demasiado tempo para que se pense na estratégia do proveito. O mundo de dentro ocupa-nos… que riqueza esta que se perde incorrendo em anos de terapia para um retorno mal feito.

Há uma coisa que as gentes não sabem, nunca se é cem por cento génio. Eis a prova: incorreu, o velho, em ingenuidade neste instante. A juventude não é sinónimo de cegueira. Senão onde se metem os génios prematuros, se os há? A moça nova tinha gostos particulares, uma necessidade de discordância e questionamento acima daquela que teriam os velhos normais. Estava, nesta medida, tão só quanto o homem genial dos dois biscoitos. Não havia ninguém para a linguagem entusiasta. E cada um tem a sua.

Pela inevitabilidade, apaixonaram-se.

E foi então aí – e só por isto -, que a multidão de pirilampos encontra a bravura. Há manchetes, programas de entretenimento de qualidade duvidosa. Lê-se e grita-se, agora sim com presunção empolada e violência desrespeitosa no trato:

Está completamente senil.

Ela? As observações do costume que nem valem a escrita. O velho deixou-se enganar.

O velho homem lia as manchetes entre cafés e biscoitos de canela. Ria que nem um perdido. O mundo discordava de si, aos magotes. De génio a velho babão. Uma desilusão e uma raiva nacional tão ilógica quanto a ovação antiga.

Beijou apaixonadamente os lábios da moça nova.

Agradeceu-lhe o bónus de vida extra que lhe tinha entregue. Finalmente poderia mijar do último andar e morrer sabendo que, mijo é mijo.

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