Sentada, junto à janela que transpirava a chuva do fim da tarde, acariciava o piano negro, onde depositava as mágoas e libertava a dor em cada nota grave que da alma sangrava, tingindo de mágoa aquela pele alba, macia e delicada.
E a sinfonia que se espalhava pelo espaço, fazia-a estremecer, como se todos os clássicos que tocava naquela sala aquecida se tivessem inspirado nela, na miúda de pele clara e cabelo de ouro, naquela loba branca que se transformava, apenas, quando a lua já ia alta.
Era o piano, a incubadora que a mantinha viva por dentro. De cada vez que o seu pé subjugava o pedal, o seu coração ganhava a força necessária para que o seu corpo fosse novamente invadido pela energia vital que a agarrava a vida.
E ele, que dormia mal antes dela se mudar para o piso de baixo, passou a dormir profundamente como um bebé ao colo da mãe, embalado pelas melodias que só ela, com o toque daqueles dedos suaves e meigos, poderia compor.
Ela, embalava na sua dor, aquele sono tranquilo e, na ignorância do que se passava no andar de cima, foi acalmando uma dor que, sem saber, também era sua.
Nunca se viram, nunca se encontraram na escada, no elevador, nunca cruzaram olhares, não sabiam a idade um do outro, nunca ouviram com que notas tocavam as suas vozes. Partilhavam apenas a mesma dor bemol, profunda, isolada, melodiosa.
E, em jeito de contraponto, tocaram fora do tempo, com tónica nos silêncios e notas sustenidas.
Um dia ela morreu por dentro. Vendeu o piano, mudou de casa. Nunca chegou a saber que ele existiu.
Nesse mesmo dia, ele morreu com ela, permaneceu em casa e nunca mais dormiu!