Sidney Poitier – To Sir With Love

Se há personalidades cuja importância histórica emerge anos ou mesmo décadas depois, outras há em que é possível persentir o seu efeito numa geração, arte ou até, no caso, como a bandeira que mais alto se elevou na representação de uma causa.

Escrevo este texto agora à conta de inúmeras razões, mas destaco uma que poucas é referida: antes que seja tarde. A sorte que sai a cada geração em poder testemunhar a actuação de lendas vivas com a límpida noção de o serem (escrevi acerca disto num artigo sobre Meryl Streep) inspira-a (à geração); ter a consciência de ser contemporâneo de uma lenda que não só está viva, como se tornou lendária não apenas na arte que a projectou – o Cinema – como, rasgando a tela (ou através dela), se tornou num dos representantes maiores da luta contra o racismo na década de sessenta nos Estados Unidos: Sidney Poitier.

‘Adivinha Quem Vem Jantar’, o derradeiro filme com Spencer Tracy

Com noventa e quatro anos completados no dia exacto em que escrevo estas linhas – 20 de Fevereiro – é natural que Sidney Poitier nos deixe em breve. Fosse esta a única razão para lhe dedicar umas linhas e terminaria por aqui. Mas a urgência prende-se não apenas com o alerta de ainda podermos regozijar-nos em tê-lo entre nós, mas também por tudo – e reforço: mesmo tudo! – o que nos deixou.

Nascido em Miami por acaso, Sidney Poitier cresceu nas Bahamas e foi a primeira estrela negra em Hollywood, o primeiro intérprete negro a ser cabeça de cartaz e a constituir a razão principal para atrair os espectadores às salas e o primeiro artista negro a vencer um óscar numa categoria de interpretação principal em 1963 (a primeira havia sido Hattie McDaniel em 1930 com E Tudo o Vento Levou).

Sidney Poitier foi-me apresentado pelo meu pai, num filme que passou na televisão, permanecendo até hoje como o meu preferido e que talvez seja o filme que fecha a era de ouro do actor em Hollywood: O Ódio que Gerou o Amor, de 1967 (To Sir With Love, no original). Nele, Sidney Poitier é um professor destacado para uma escola problemática numa zona desconsolada de Londres. Os clichés estão todos lá, mas a qualidade da obra e a minha adolescência ensinaram-me a amar o Cinema: é Cinema e de vez em quando os clichés – muito de vez em quando – ajudam a gravar as coisas boas na memória.

Treze anos antes Sidney Poitier estrear-se-ia no seu primeiro grande papel, encarnando o outro lado da sala de aula – um aluno – em Sementes de Violência, do importantíssimo (e pouco reconhecido) realizador Richard Brooks. Não vi Sementes de Violência, como não vi grande parte das obras de Sidney Poitier, muitas delas principais. Escrever acerca de alguém de quem apenas usufrui de quatro filmes mostra o quanto esta personalidade foi importante na minha caminhada pelo conhecimento da História do séc. XX através do Cinema. Três anos mais tarde viria a primeira nomeação, ao lado de Tony Curtis, com Os Audaciosos, outra obra que aguarda pela abertura de espaço no limitadíssimo tempo de vida que a mesma concede a si própria. Stanley Kramer viria a orientar Poitier numa outra obra marcante da década de sessenta, no melhor ano do actor: Adivinha Quem Vem Jantar, de 1967. A história, já refeita inúmeras vezes, conta com uma constelação para qualquer apreciador da 7ª Arte: Katharine Hepburn e Spencer Tracy formam um casal a quem a filha apresenta o namorado negro. A década de sessenta cunhava algumas das mais importantes mudanças sociais do século e se hoje o filme pode parecer datado, a questão continua a percorrer a mente de muitas famílias.

‘No Calor da Noite’ e a tensão racial

Além de O Ódio que Gerou o Amor e Adivinha Quem Vem Jantar, 1967 contou também com No Calor da Noite (urgente ver brevemente!). Rod Steiger levaria o óscar mas foi Poitier quem brilhou – They Call me Mr. Tibbs! – ao devolver uma bofetada a um homem branco no grande ecrã. Numa das raras vezes em que a cerimónia de entrega dos óscares foi adiada, devido ao assassinato de Martin Luther King, o filme levaria o prémio maior e Steiger o de melhor interpretação (o actor havia ameaçado não comparecer caso a cerimónia não fosse adiada para depois do funeral do activista negro). Whoopy Goldberg diria, na cerimónia de 2002, aquando da entrega do prémio honorário a Sidney Poitier, Nobody slaps Sidney.

É fácil admirar os activistas do passado mas reconhecê-los em tempo real nem sempre se faz claro ante a nebulosa poluição entrincheirada: tenho a certeza que não admiraria Sidney Poitier como hoje acontece se eu tivesse vivido naquela época e no entanto, ao contrário do que seria de supor, foi com classe e com trabalho que ele respondeu à descriminação a que os negros eram votados. Provavelmente a melhor arma para combater o ódio mas também, a mais difícil de segurar. No entanto, permaneceu uma pedrada isolada no charco, não tendo sido acompanhado por nenhum outro artista de forma consistente durante décadas.

Só em 1964 foi assinada a lei que acabou (no papel) com a segregação racial na América, o ano em que Sidney Poitier recebeu o histórico óscar por Lírios do Campo (filme de 1963), o menos bom dos quatro filmes que vi – pese a história bem intencionada: um negro ajuda uma congregação de freiras a construir uma capela – mas sem dúvida o mais marcante. Foi nos anos do torrent, em que escolhia os filmes que queria em cada momento, de acordo com o interesse e a fome em mergulhar na maravilhosa história do Cinema. Foi por essa altura que saquei também Uma Réstia de Azul (1965), em mais uma obra com um forte cunho racial: uma jovem cega apaixona-se por um homem sem conhecer a cor da sua pele, para desgosto da mãe (numa magnífica e premiada interpretação de Shelley Winters).

‘Uma Réstia de Azul’, uma história bonita e impactante

A demonstração mais inequívoca do impacto que este homem teve na quebra de barreiras que pareciam impossíveis de ultrapassar traduz-se na impossibilidade de falar dele sem mencionar os seus filmes, mas também na impraticabilidade de não sermos visitados por um enorme humanismo de cada vez que a imagem de Sidney Poitier nos aparece.

Só trinta e oito anos depois de Lírios do Campo, em 2001 (cerimónia de 2002), outro intérprete negro voltaria a ser premiado com um galardão principal: no mesmo ano em que Sidney foi agraciado com o prémio honorário, não um mas dois intérpretes afroamericanos alcançariam o feito: Halle Berry tornar-se-ia na primeira mulher não branca a vencer um óscar por uma interpretação principal com Depois do Ódio e Denzel Washington, com Dia de Treino, diria no discurso de agradecimento, virado para o camarote onde Sidney Poitier se encontrava com a família (parafraseando o visado): I’ll always be chasing you Sidney! I’ll always be following your footsteps!

A História é pródiga em criar mitos, mas a importância que Sidney Poitier teve no meu percurso enquanto amante de Cinema há quase três décadas é muito real. A elegância faz-se meta que não creio que algum dia eu venha a cruzar, mas enquanto houver cinema e causas para por ele serem retratadas, estarei na primeira fila da sala, quando as luzes se apagarem e os sonhos juntarem mito e realidade. Não é possível construir a Arte das causas alimentando a Cancel Culture: gente a mais foi já cancelada. Felizmente Sidney Poitier não foi, e também devido a ele (e a muitos outros, mas seria injusto deixar de fora os muitos de que me iria esquecer), o Cinema pôde aprender a libertar-se. E a libertar-nos.

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