Qual a cor da liberdade?

Às Forças Armadas e ao povo de Portugal 

«Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade» 

J. de S.

Qual a cor da liberdade? 

É verde, verde e vermelha.

Jorge de sena

Jorge de Sena, no seu poema Cantiga de Abril pergunta constantemente qual é a cor da liberdade e sempre conclui que ela é verde e vermelha. Não sabemos se se referia às cores do cravo ou ao simbolismo das cores verde e vermelho (talvez a ambos ou nenhum destes), que também estão nas cores da bandeira nacional.

Prefiro acreditar que se referia ao simbolismo das cores. O verde que representa a cor da esperança, aquele único lampejar de uma expectativa de que algo pode vir a ser realizado, mas do qual ainda nem sequer vislumbramos; o vermelho que tanto representa a luta heroica dos que, carregados de esperança, vão além das suas forças por cumprir um ideal com o qual sonham, muitas vezes a custo das suas próprias vidas, como da raiva de um povo que já não aguenta o peso da opressão.

Celebramos agora 50 anos desde que uma revolução pôs fim a uma ditadura. 50 anos! Não é mais um número ou mais um ano que passou. Há meio século que podemos escolher para onde ir, com quem ir ou sobre o que quisermos e isto não é somenos.

A luta pela liberdade não começou (nem terminou) há 50 anos. Na verdade, para alguns, começou há 60 ou 70 anos, em condições de clandestinidade e suportando prisões e torturas ao estilo gestapo. Se há algo em que regimes opressores se distinguem é na criatividade de técnicas e métodos de levar pessoas ao limite do sofrimento para as quebrar, procurando eliminar quem ouse pensar fora do que é autorizado pela “lei”.

2024 não é, contudo, apenas o ano em que celebramos meio século de liberdade, mas é um ano onde, paradoxalmente, temos 50 deputados que se filiam diretamente no lema de Deus, Pátria, Família (e trabalho), tão caro ao Estado Novo. Aliás, temos até quem, à semelhança do que aconteceu com Salazar, alegue ter sido escolhido por uma providência para se dedicar à pátria (embora sem indicar de que modo ou quando essa tal providência o tenha feito).

Marx no seu clássico 18 Brumário de Luís Bonaparte, parafraseando Hegels, aludia que a História se repetia duas vezes: primeiro como tragédia e depois como farsa[1]. Conseguimos terminar com a tragédia há 50 anos, mas a farsa teima, como erva daninha, em permanecer.

Não por acaso, agora se está a discutir a família, supostamente, sobre “ataque” e, por incrível que pareça, vozes que argumentam que as mulheres antes eram mais livres (basta ver que não se queixavam, segundo um dos iluminados autores do Família e Identidade). Quando uma mulher tinha de pedir autorização ao marido para viajar, era ela livre? Quando o marido podia exercer o direito de bisbilhotar a correspondência da mulher, também era uma forma de liberdade para esta? Quando a mulher era vítima de violência doméstica sem direito se queixar, vivia ela em liberdade?

A democracia é como uma flor: precisa ser cuidada diariamente. Numa democracia parlamentar, onde a vontade soberana do povo é delegada em partidos políticos, não é de esperar que 80% dos cidadãos deles desconfiem; não é de esperar que o órgão de representação nacional, a Assembleia da República, não tenha a confiança de 60% dos cidadãos. Estes dados não são positivos e muito menos exclusivos a Portugal, mas devem servir de ponto de discussão para aproximar o sistema político aos cidadãos.

Participação política não se resume apenas ao voto, feito uma vez a cada quatro anos, no caso de eleições legislativas e se o governo conseguir cumprir o mandato. Existem outras formas de exercer influência no sistema político. Se há algo que podemos aprender com a Revolução e período que a sucedeu é a participação direta das pessoas, organizadas em conselhos e comissões, na discussão de problemas e procura de soluções.

Há 50 anos, por exemplo, também tínhamos um grave problema na habitação, onde metade das casas não tinha saneamento ou acesso à rede de esgotos, eletricidade e muitas nem água corrente possuíam. As rendas eram altas, por conta da especulação, e desajustadas com os rendimentos auferidos. Muitas vezes, mais do que uma família dividia uma casa (se é que se podia chamar casa àquilo onde viviam) e não era raro ver famílias num quarto.

Foi o movimento pelo direito à habitação, em grande medida liderado por mulheres, que esteve na origem de diferentes comissões que permitiram a intervenção direta das pessoas no sistema político e económico. Todo o processo SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local) é disso exemplo, onde o poder local, técnicos e população se envolveram num esforço para resolver o problema habitacional, mas também exigindo o seu direito à cidade, a espaços culturais ou equipamentos urbanos para as crianças.

Os políticos devem, em certa medida, representar quem neles votou sob pena de iniciarem o afastamento das pessoas que eles mesmos deviam representar. Não podemos confiar em quem não conhecemos e a maioria das pessoas desconhecerá quem é cabeça de lista do partido pelo distrito onde vota.

É importante, se queremos conservar a democracia e incluir todas as contribuições construtivas para uma sociedade mais inclusiva, que os políticos deixem por um momento o assento parlamentar e se sentem com as pessoas que representam, ouvindo os seus problemas e trabalhando em soluções. Entre outras atividades, esta permitiria renovar a confiança nas instituições democráticas.


[1] Numa referência ao golpe de Estado de Luís Bonaparte e ao golpe encetado pelo seu tio, Napoleão Bonaparte, anos antes, entre outras comparações entre figuras de relevo do período revolucionário e do período de Luís Bonaparte.

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