A Percepção da Qualidade tem Defeito

Qualidade, segundo a ISO (International Standardization Organization), qualidade é a adequação e conformidade dos requisitos que a própria norma e os clientes estabelecem. Em outras palavras, a qualidade é o nível de perfeição de um processo, serviço ou produto.

Defeito, substantivo masculino Imperfeição física ou moral; deformidade. Mau funcionamento; falha, avaria, dano. Ausência de perfeição, de correção; imperfeição. Hábito que causa danos; vício, mania.

Constituindo-se como um aparente paradoxo, o título do presente, uma frase simples e contra intuitiva, adequa-se sobremaneira à forma como o mundo actual se interpreta a si próprio e, fundamentalmente, à sua multiplicidade de caracterizações possíveis.

Esta paradoxalidade do mundo actual resulta aparentemente de um conjunto interrelacionado de consequências de um acesso transversal e ilimitado à informação.

Este acesso que, numa primeira análise, seria supostamente benéfico, e do qual resultaria um raciocínio ponderado e informado sobre um qualquer tema, aparentemente gera uma sobrecarga de informação nos utilizadores, e um consequente cansaço “informacional”, do qual resulta ulteriormente um desleixo intelectual. Os utilizadores, em consequência da sobrecarga e infinita interoperabilidade da informação decidem ancorar-se a uma posição simplificada da sua opinião, normalmente um dogma qualquer, descartando de forma automática todo o tipo de contraditório que possa originar uma necessidade de ponderação da sua opinião.

Esta polarização individual (chamemos-lhe clubite) está na génese do formato sociocultural e geopolítico do mundo – nós e os outros; os regimes e as democracias; a nossa fé e os infiéis; o bom e o mau. E pesando as diferenças culturais existentes, o acesso a uma educação inclusiva e indiferenciada, a par com os interesses políticos particulares de cada uma das nações, indiferenciando regimes de democracias, verificamos que o caminho para a situação actual do mundo está a ser pavimentada desde o final dos anos ’90 com o advento da Internet que, em contracorrente, uniu dividindo.

Verifique que este clubite (gosto tanto deste termo…) também cria cisões internas nas sociedades e culturas supostamente homogéneas, ou seja, a origem disto, que devia criar discussão (no bom sentido do termo) e evolução, cria diferenças e discussão (no mau sentido do termo), e consequentemente percepções diferentes da realidade.

E assim, criados os fundamentos autofágicos de uma sociedade espartilhada, também a percepção da qualidade, ou seja, do que é bom, uma noção que deveria ser transversal a uma maioria da sociedade, torna-se uma exclusividade, um reduto, pertença de uns poucos, que definem, do alto dos seus pedestais, aquilo que tem, ou não, qualidade.

Este processo cabalístico e implosivo do ponto de vista evolutivo, que abrange a maioria das áreas, encontra-se apinhado de “verdades absolutas”, “certezas”, “unanimidades” e “universalidades”, que acabam a ser em si mesmos argumentos despojados do sentido que originalmente têm, reflexo das polarizações sociais a que estão sujeitos.

Com o passar dos tempos, estes processos de desleixo intelectual de sociedades inteiras passam a ser incestuosos, negando tudo e até a si mesmos, veementemente, e, de forma irónica, a destruírem-se em esplendor, recriando-se na “next big thing”, como se um zeitgeist apodrecido, reflexo dos nossos dias.

Assim, repito, a percepção da qualidade tem defeito. Apenas um. A capacidade da autocrítica. Da aceitação que aquilo que individualmente se acha sem qualidade pode efectivamente a ter, e não ser visível do ponto de vista do próprio. Que as necessidades dos outros podem ter valor. Que podemos estar errados, podemos não ser os melhores, e os nossos talentos podem não ser a última “Coca-cola no deserto” (passo a publicidade) e que isso não nos inviabiliza como indivíduos, e muito menos como sociedade, e que a diversidade é benéfica, pois quando esta se apaixona pela humildade, está feito o match (termo mais consensual para não ferir susceptibilidades), e pavimentado o caminho para outros “next big things”.

Termino com uma citação de um poeta-poema que faleceu no dia 09 de Abril de 2024, Eugénio Lisboa, que escreveu: “O nosso meio literário, ao contrário do que costuma acontecer com o meio científico, é um pouco artificial, inautêntico, feito de aparências e poses que sempre me pareceram um bocadinho cómicas e pretensiosas. Os bons cientistas acham que quando um pensamento se não pode formular de maneira muito simples, é porque, provavelmente, não se está a ir por bom caminho, mas não poucos literatos privilegiam o tortuoso e o opaco, como sinais de profundidade: são gostos, mas, a meu ver, muito duvidosos”.

O problema é que aos dias de hoje tudo, até a ciência, já trilha estes caminhos tortuosos e opacos.

Ao Eugénio Lisboa (25.05.1930 – 09.04.2024)

Share this article
Shareable URL
Prev Post

A essência da tolice

Next Post

A era das redes sociais. E agora?

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Read next

Ídolos vazios

Desde a mais tenra idade que não soube o que era idolatrar ninguém. Nunca tive modelos de quem ou de como queria…