Durante anos, vamo-nos preparando para a maternidade. Ser-se mãe é, de acordo com a crença popular, uma das melhores coisas da vida, se não mesmo a melhor. Os anos passam e o nosso corpo amadurece ao ponto de estar preparado para gerar vida.
Engravidamos e a felicidade, na maioria das vezes, toma conta de nós e não conseguimos explicar ao certo a razão. Só quem engravida sabe do que falo, daquela felicidade mesmo sem sentir mais nada.
Para a gravidez, também há a preparação e acompanhamento para que tudo corra bem. Bem e sempre pelo melhor. Das coisas que acontecem aos outros não se fala. Crê-se que não valha a pena, afinal eles são os outros.
Contudo, é preciso falar e muito. Principalmente no que diz respeito à maternidade abruptamente interrompida.
Há quem diga que são mães de ninguém porque nunca registaram os filhos, porque nunca lhes pegaram ao colo, porque nunca passaram uma noite em claro a alimentá-los ou acalmá-los, porque não os conheceram… tão errados que andam!
São mães, sim! Não de ninguém; mães de seus filhos. A mulher nasce para si mesma como mãe no instante em que confirma a gravidez.
Há mães cujo colo fica vazio, o mesmo colo que tanto prepararam para receber os filhos.
Sandra Almeida é mãe de dois. A mais velha e primeira partiu, sem qualquer sinal de que algo estaria mal, às 37 semanas e meia. Soube-o através de um exame de rotina, numa cardiotocografia (CTG) não mais se escutava o coração de Mónica, é este o nome da filha que nasceu sem vida e terminou enterrada no dia em que deveria nascer a gritar ao mundo a sua chegada. Optou por nunca esconder ou apagar da memória de todos que é mãe de dois filhos. A Mónica está com ela e com a família a cada instante, embora não fisicamente.
Às 40 semanas, nada previa que Kevin tomasse o mesmo rumo que Mónica. Um hematoma retroplacentar fez com que Daniela Horta pegasse no seu filho sem vida.
Depois de uma gravidez pautada pela tensão alta, contando já com uma perda anterior no primeiro trimestre, Ana Dias recebeu a notícia de que o filho se encontrava a lutar pela vida com 23 semanas de gestação, após grande perda hemorrágica. Lembra-se de ter estado cinco dias a agonizar com dores até escutar que “o seu filho não é nada” quando questionou a possibilidade de se realizar funeral.
Leonor (nome fictício) teve a segunda gravidez aos 38 anos farta em condições daquelas que nenhuma mãe quer, aquelas que ninguém fala porque só acontecem aos outros. Entre perdas hemáticas, descolamento de saco gestacional, restrição de crescimento que a obrigaram a estar de repouso absoluto, ficou a saber que devido ao estado bastante debilitado da bebé com uma gestação de 26 semanas e peso de 470g não fosse isso suficiente recebeu a confirmação de que a única forma possível de estancar uma hemorragia que tinha, na altura, era a de adormecer a filha para que a mesma nascesse sem vida.
São mulheres cuja história da maternidade lhes é roubada a cada vez que alguém lhes diz que, como se soubessem mesmo de alguma coisa, não vale a pena chorar nem sofrer porque não são mães de ninguém; que lhes dizem que era pior se tivesse morrido depois de conhecerem o/a filho/a; que se escudam de Deus para tentar amenizar o sofrimento “fica para a próxima, Deus quis que fosse assim” ou ainda “não fiques assim que aquilo não era um bebé nem era nada”.
São mulheres que, ao contrário do que parece, passaram mais noites em branco do que as mães cujos filhos lhes couberam no colo. Passaram noites e dias a chorar, procurando respostas, culpabilizando-se por não terem percebido que algo estava mal ou por acreditarem mesmo que a culpa do desfecho é das próprias. Que se veem obrigadas a recompor-se rapidamente, a juntar todos os cacos estraçalhados e partidos, sem que lhes seja fornecida gratuitamente ajuda psicológica. Que ficam vincadas pelo medo de voltar a engravidar. Que investiram na maternidade e com isso, ao chegar a casa, enfrentam (a um custo hercúleo, longe de conseguirmos imaginar) um quarto preparado para receber a vida que não lhe chegou. Que têm de lidar com perguntas às quais não querem responder. Que algumas estiveram internadas, após a perda, no mesmo corredor onde estão as mães com recém-nascidos. Que estão arrependidas de terem visto ou não terem visto e/ou pegado ao colo dos filhos já sem vida. Que têm um colo vazio daqueles filhos para sempre.
São mulheres que, à maneira de cada uma, se conseguem recompor de serem chamadas “mães de ninguém”.
São as mães da Mónica, do Kevin, do Francisco, da Mariana, Beatriz, do Simão, da Mafalda, do Tomé, da Lara e de tantos outros meninos a quem muitos teimam em chamar de “ninguém”. Que os conheceram nos movimentos fetais, nas conversas que tinham com eles dentro do útero ou nas músicas que os faziam ouvir, nos paladares que lhes deram a conhecer em cada refeição; meninos que grande parte da sociedade teima em não respeitar quando ousa aceitar que sejam levianamente chamados de ninguém.
São mulheres cuja maternidade lhes foi roubada com a distância do céu e com o colo vazio. São mães de seus filhos que lhes ficam perpetuamente na saudade. Sempre e para sempre.