Interrompeu o passo apressado às primeiras notas de mais uma música. Não havia problema porque não tinha pressa nenhuma, apenas queria afastar-se dali, e afastar-se bem depressa. Dali do momento não de nenhum local em particular. Dali que era um momento, aquele momento, o momento em que ela disse fim. Um fim mascarado de todas e mais algumas formas da humanidade que tal palavra não tem. Era por isso que seguia, corria, fugia depressa.
Aquela música que ia ouvindo vinha de uma lista particular que ela lhe acabara de dar. Dar ou relembrar, talvez relembrar, fazê-lo relembrar não só músicas mas muito mais do que ele foi esquecendo. A música que ouviram e partilharam naquela noite especial em que comemoraram algum feito que ele esquecera. Era uma música que vinha após aquela em que dançaram juntos no soalho virgem da casa nova que haviam acabado de comprar. Deixou-se ficar alguns momentos suspenso no tempo em frente a uma passadeira. Os carros paravam e tentavam chamá-lo de volta, protestos efémeros, logo seguiam esquecendo-o logo de seguida. Ele perdeu-se ao recuperar aquela parte da memória. As paredes brancas, o cheiro a novo, a luz vibrante, as sombras carregadas de sonhos e projetos. Juntos na nova casa era juntos na nova vida que era apenas a continuação da que já tinham. Que se perdeu naquelas paredes?
Continuando o seu caminho fugindo, olhou temeroso para o céu cinzento que o ameaçava. Nem de propósito nova música atirou-o para uma praia deserta. Uma praia de areia dourada que projectou os tons cinzentos da chuva. Recordou de novo parado no meio da rua, olhou o céu e viu-se a dançar com ela sob os pingos da chuva que de repente caíram naquela praia que não era deserta porque os dois estavam lá dançando, amando-se, desenhando uma vida em comum nas simples palavras que sem pensar, apenas por o desejar, sem hesitar havia-lhe dito. Vamos viver juntos. Partilhar uma vida, a vida, a nossa vida.
Vida que passou a correr como ele corria agora para não perder o comboio como acabara de a perder. Já sentado, conseguiu em fim respirar sob os sons lentos de uma melodia que lhe era mágica. Os sons, os acordes, as lágrimas que lhe caíram e lhe salgaram o rosto. A harmonia, a balada, aquela balada, a memória aquela memória. As lágrimas no comboio a reviver o momento em que sentiu o corpo dela pela primeira vez. A paixão levada ao limite, o tacto, o silêncio, a respiração ofegante, as carícias, o amar, o amar o amar. O amar intensamente. As lágrimas a recordar a primeira vez que fizeram amor e chegada a casa.
A casa que agora era sua mas antes fora deles. A casa e uma música, “Como What May”, a música que desde sempre foi, é e será a música deles. Sim, porque falta reviver o dia em que se conheceram e se apaixonaram. Juntos se prometeram e alimentaram um ao outro, um do outro. Juntos já não estavam, e quando a última música terminou percebeu que era a primeira. A primeira de uma colectânea que lhe fugia pelos finos quereres da felicidade. Correu para casa e despejou na cama a caixa com todos os papelinhos, bilhetes e coisas de todo o tipo que partilhara com ela. No meio lá viu uma cassete, uma velha cassete, tecnologia ultrapassada. Lá estavam as músicas que um dia ela lhe deu. As músicas que eram o motivo porque ela o amava e também porque ele a amava. Era o motivo porque eles se amavam ainda e talvez sempre.
Não tinha como a ouvir. Nem a cassete nem ela.