O leitor conhece, de certeza, o jogo tradicional 1,2,3, macaquinho do chinês. Em traços gerais, um dos jogadores, designado de macaquinho do chinês, posiciona-se junto a uma parede, virado de costas para os outros jogadores. O macaquinho do chinês bate com as mãos na parede, dizendo um, dois, três, macaquinho do chinês. Enquanto diz a frase, os restantes jogadores avançam na direcção da parede. Quando o macaquinho do chinês termina a frase, vira-se imediatamente, tentando ver alguém a mexer-se. Quem for apanhado em movimento volta para a linha de partida. O objectivo é chegar à parede sem ser apanhado pelo macaquinho do chinês.
E também se lembrará de ter visto recentemente as autoridades policiais a jogarem ao jogo do gato e do rato com os proprietários e clientes dos restaurantes e bares que actuam de forma clandestina, divertindo-se a desrespeitar as normas do estado de emergência. São, de facto, momentos engraçados e bem passados, que, julgo, entusiasmam bastante quem os vive. Parece-me até uma excitação muito refrescante.
O povo português é, sem dúvida, um grande apreciador dos estimulantes jogos tradicionais. Eu próprio sou um grande entusiasta dos jogos tradicionais portugueses e fomento-os sempre que posso. Trata-se da identidade e cultura de um país, dizem alguns; é uma questão de patriotismo, digo eu. Muitas vezes, no seio familiar, uso o patriotismo como desculpa para usufruir da minha imaturidade à vontade.
Na verdade, o povo português não gosta apenas de jogos tradicionais, deleita-se com bons jogos. O povo português é um jogador por natureza, gosta de chegar primeiro, de engendrar estratégias para obter vantagem, muitas vezes dissimular as regras. O curioso é que, a dissimulação das regras do jogo passou a ser, ela própria, uma forma de jogo tradicionalmente portuguesa, cada vez com mais adeptos, que vibram com este entretenimento. E isso leva-nos à seguinte questão: alterar as regras é um gesto feio ou bonito? Exacto, caro leitor. Tendo em conta as desculpas habituais, depende de quem estiver a jogar. Parabéns ao astuto leitor.
Nesta rábula, o macaquinho do chinês são os portugueses que estão em listas de vacinação prioritária. A diferença é que, neste jogo, os restantes jogadores mexem-se e são vacinados de forma indevida, não se importando que o macaquinho do chinês esteja a ver, obtendo, assim, vantagem ilegal.
Olhando para os últimos acontecimentos, a vacinação a pessoas não prioritárias tem atingido contornos divertidos. Na delegação Norte do INEM mandou-se vacinar funcionários de uma pastelaria; vários autarcas, responsáveis de diversas instituições e respectivos familiares e amigos foram também vacinados de forma indevida. Entretanto, vários padres obtiveram também vantagem na vacinação, olvidando, assim, um dos mais importantes mandamentos do evangelho, não cobiçarás a vacina do próximo.
No fundo, tudo se resume a isto: quem dentro de vós não tiver pecado, que atire a primeira pedra.
Vou ali jogar às escondidas com o Stevie Wonder e já venho.