A Eva foi recolhida da rua numa noite calma. Estava a dormir numa paragem de autocarro e quando lhe sussurrei “anda’‘, ela levantou-se e veio atrás de mim. A Sara já estava a caminho, eu é que ainda não sabia. Esta é a história da Eva, uma cadela que tocou muitas pessoas e que foi a irmã, muito especial, de uma menina que nunca a esquecerá. Viveu uns anos, não tantos como eu gostaria, mas deixou um rasto de magia que perdura até hoje.
Para um animal recolhido da rua portava-se bastante bem. Estava habituada a andar sozinha e sabia a ordem dos semáforos, pois esperava sempre o verde para atravessar. Quando a convidei para casa, estava na Avenida de Roma, uma artéria bem movimentada de Lisboa e ela seguiu-me com toda a naturalidade. Era curioso verificar como se sentava, no separador central, com a maior das calmas e depois seguia a sua vida. Ali estava um animal com carisma e muito especial.
Quando a Sara era bebé, ficava deitada na cama, rodeada de almofadões, para não cair e ela, a Eva, tinha a tarefa de não deixar ninguém mexer na menina. Ninguém, nem nós, a menos que a ordem fosse retirada. Era a sua guarda fiel. A relação das duas foi curiosa e cúmplice, porque cresceram juntas e uma era o apoio da outra. Numa das mãos estava um pedaço de pão e na outra a cauda da Eva, com os pelos normais que um cão costuma ter. Deixava-a fazer tudo e nunca se aborrecia nem zangava. Foi encostada a ela que começou a andar.
Quando mudámos da cidade para uma zona mais calma, para o campo, não gostou. Era um animal urbano e não rural. Notava-se que estava desagradada e mostrava-o muito bem. Mas o tempo cura muitas manias, até as dos cães e acabou por gostar de viver no campo. Como vingança esfregava-se nas bostas das vacas e voltava para casa verde e muito “perfumada”. Rapidamente fez amigos de quatro patas e muitos de duas pernas.
As características únicas desta bichinha fizeram com que ela se tornasse bem conhecida. Num rally paper, havia pelo menos três perguntas sobre ela, e uma implicava descobrir onde morava. Tornou-se uma vedeta da zona. Tinha as suas manias mas também era dotada de uma doçura fantástica. Gostava de ouvir música, David Bowie, sobretudo. Os blues eram sempre acompanhados pelo seu cantar, quando ouvia a harmónica. Um must.
A casa estava sempre cheia de adolescentes, que entravam e saíam a toda a hora. Era ali que se faziam as confidências, que se davam os conselhos e, o mais importante de tudo, se guardavam os segredos. A Eunice, talvez a que tenha tido esta fase mais dramática, chorava muito e ela vinha, devagarinho e pousava a cabeça no colo dela. E assim choravam as duas, em sintonia. Mas se fosse para as doideiras também estava pronta.
Uma vez, acometida de um espírito científico violentíssimo, decidiu abrir todas as almofadas e verificar, com rigor, o seu interior. Quando percebeu o que tinha feito, resolveu o imbróglio com a maior das facilidades. O chão estava coberto com uma manta grande e ela conseguiu colocar tudo dentro dela e transformá-la numa trouxa. Feito!
Entretanto o Van Gogh, outra alminha de quatro patas, vinda da rua, fazia-lhe companhia e ela soube educá-lo correctamente. Ele respeitava-a e obedecia-lhe em tudo! Ficou com esse nome porque alguém lhe tinha furado uma orelha e, como é óbvio, estava rasgada. Nunca ficou boa, o que lhe dava um ar ainda mais cómico. As idas ao veterinário eram épicas porque a rapariga não queria ficar nem à espera e muito menos deitar-se no chão. Isso era para os cães. Sentava-se nas cadeiras e fazia uma barulheira tal que tinha que ser logo atendida. Devaneios.
Os anos iam passando e a injustiça de terem uma vida tão curta angustiava-me, mas não podia fazer nada. Num dia de Setembro, notei-a diferente, parada e muito estranha. Antes de sair de casa, para o veterinário, olhou para tudo e despediu-se. Ela sabia que já não voltaria. Era um tumor que tinha chegado ao limite e a solução foi deixá-la a dormir para sempre. A minha Eva morreu com cancro da mama. O cão não a viu regressar e andou meses à procura dela. Até teve de tomar medicação. Dizem que os bichos não sentem? Estão muito enganados! Esse dia marcou-nos a todos e não foi fácil superar a sua ausência.
A Sara ficou de rastos e todos que a conheciam sentiram muito a sua falta. A peça de união e fundamental da nossa vida, da nossa família, um anjo sem asas que tinha guiado o nosso caminho, deixava de estar connosco. Claro que nunca pediu nem trelas nem ração de marca, contentava-se com o que lhe dávamos e era feliz assim. No início ficava muitas horas entregue a si própria e quando chegávamos a alegria era tão grande que é difícil de descrever. Parecia que entendia tudo e, no seu modo de ser, era mesmo verdade.
Para se entreter observava o pastor e o seu rebanho. Ela via e percebia. Um dia, quando veio à rua, decidiu colocar em prática o que tinha aprendido. Juntou as ovelhas e, num ápice, elas todas obedeceram. Também tinha o hábito de restabelecer a ordem quando os outros cães faziam disparates. Não sei o que lhes ladrava, mas os outros entendiam e o assunto ficava arrumado. Depois do feito, vinha ter connosco, a rir, com ar muito satisfeito, a mostrar que era muito desembaraçada.
As adolescentes agora são todas mulheres e têm vidas próprias. A Sara pertence à geração M., já viveu em vários países e regressou. Tem agora uma cadela para lhe fazer companhia, para lhe recordar essa parceria que tanto bem lhe fez enquanto pequena. Ao fim destes anos já conseguimos falar da Eva sem as lágrimas começarem a cair desalmadamente. Foi uma cadela muito especial. Após a sua morte todos ficámos órfãos e aquela magia que ela libertava, continuou nas nossas almas, espalhando o amor que ela nos deixou. Restam as memórias, que são muitas e que ninguém nos poderá nunca roubar!
Esta história podia ser diferente, se eu não tivesse olhado para a paragem de autocarro ou se nem tivesse sentido aquela coisinha, cá dentro, a dizer: “Olá! estou aqui! vou ser feliz contigo!”. Com o tempo percebi que esta cadela tão peculiar, tinha sido abandonada. Uma cicatriz na perna traseira, mostrava que alguém a tinha cuidado. Não fiquei indiferente. Encheu-me a vida de luz e de alegria. Deu tanto e pouco pediu. Não há dia algum que não me lembre dela e da sua doçura canina.
Quem abandona os animais é uma besta, um ser desprezível que não merece o ar que respira. Cães, gatos, tantos outros, são anjos que não usam asas, mas, sim, pelos ou penas e têm maior eficácia que medicamentos. Curam as solidões, as ansiedades, a amargura, a dor, a tristeza, perfumam a vida e dão alento para continuar. Uma casa sem pelos não tem vida. Estes são sinónimo de terapia que resulta à primeira festa.
Quanto vale aquele sorriso que não para de acalmar? Lá longe, num passado que não volta, vejo a Eva a sorrir para mim com o seu ar aristocrático e altivo. Era quase humana de tanto ouvir e ver. Era quase perfeita só por existir. Era a Eva que deixou boa memória e que se despediu num dia em que não já não tinha mais amor para espalhar. Deu tudo e isso bastou.
Que saudades tenho da sua presença e do seu olhar reprovador. Foi uma leve passagem para mostrar que quem não sabe olhar, deixa a vida fugir. É por isso, esta é uma história de encantar….