Construir um castelo de cartas, daqueles bem grandes e elaborados, lindíssimos de se ver, leva tempo, calma e muita técnica para conseguir, pacientemente, colocar cada carta no local certo, na inclinação correcta para ir suportando a estrutura. Há locais onde colocamos duas cartas para reforçar a estrutura, se for necessário, mas é apenas com uma dedicação e foco totais que conseguimos ir construindo um belíssimo castelo. No entanto, quando surge uma distração, quando damos um passo em falso, colocamos uma carta mal e o inevitável acontece. Nesse momento, maior parte, quando não a totalidade da construção, desmorona-se, aproveitando as pequenas falhas que existem na colocação manual e não totalmente precisa das cartas umas sobre as outras.
Há algumas semanas, quando se levantou suspeita de gestão danosa e fraudulenta por parte da direcção do Grupo Espírito Santo, começou-se a assistir à magistral queda de um dos mais antigos e maiores grupos financeiros da banca portuguesa, algo que, até há alguns meses, era impensável. Uma carta mal colocada deu início à derrocada de um castelo construído muito pacientemente sobre erros e erros, sobre esquemas e falta de honestidade com o objectivo de continuar a enriquecer uma família e as suas orbes.
A fórmula é muito simples e consiste simplesmente em aproveitar as próprias características do sistema financeiro global para executar operações complexas e cheias de ramificações que se tornam difíceis de controlar e acompanhar, permitindo fugas e desvios com grande facilidade. O próprio sistema permite, pois ele próprio se baseia nisso, dado que assenta sobre uma premissa de virtualidade criada sobre uma origem física. Maior parte do dinheiro que existe no mundo é pura e simplesmente virtual, não existe impresso, nunca existiu, nem nunca existirá, são apenas zeros e uns que circulam pelos sistemas informáticos do mundo e transformam-se em saldos, movimentos, aplicações, acções e tantos e tantos outros instrumentos financeiros que, constantemente, são criados.
O que temos assistido desde 2008, com o início da crise financeira que ainda estamos a viver (digam os indicadores o que disserem), é o demonstrar da fragilidade deste sistema e a sua constante falha. Parecemos assistir a um magnífico desfile de um elefante numa loja de cristais, onde, qual diva, agita os braços, mostrando a sua altivez. Os grandes líderes políticos e financeiros mundiais mantêm a sua aposta no sistema, mas a realidade é que algumas peças mais frágeis, ou mais expostas vão-se partindo, como se pode verificar ao longo dos últimos anos em diversos casos, nomeadamente em Portugal, onde começamos a coleccionar casos de bancos com graves problemas financeiros, devido a gestão danosa.
A primeira reacção das entidades reguladoras é a de reforçar e intensificar a fiscalização. Essa é a mensagem passada às populações que vêem nas quedas dos bancos uma ameaça à sua estabilidade financeira e à manutenção dos seus bens e que, obviamente, questionam governos e bancos centrais sobre as suas competências, criando uma ainda maior desconfiança e um sentimento de descredibilidade sobre o sistema. Parece quase um enredo de um filme de espionagem, onde um qualquer organismo de nome estranho, que tem como objectivo controlar o mundo, infiltra-se e cria problemas nas bases dos sistemas para os poder, rapidamente, conquistar, não pela força, mas pela demonstração de que representam uma alternativa. Pode não ser literalmente desta forma, mas a realidade é que o mundo continua a ser dominado por uma oligarquia que controla maior parte dos recursos financeiros existentes.
A intensificação da fiscalização não constitui, de todo, uma resolução do problema. É apenas um penso rápido colocado para tentar estancar a sangria de uma ferida aberta que, na verdade, necessita de ser desinfectada e cosida. O maior problema do sistema financeiro é, precisamente, o seu pressuposto de origem e a triste evidência que está fundado numa necessidade egocêntrica de poder e controlo, uma das piores características do ser humano.
Defendo há vários anos que este sistema financeiro tem, necessariamente, de cair e ser mudado. Nada tem a ver com ser a favor, ou contra o capitalismo, comunismo, socialismo, ou outro qualquer sistema de funcionamento económico. Tem simplesmente a ver com a objectiva evidência de que já não funciona e de que o mundo precisa de algo diferente. Prova disso são os diversos estudos que apontam para que os actuais recursos energéticos e minerais, aqueles que hoje são a base física das transações financeiras, como o petróleo, o gás natural, metais e minérios, explorados de forma intensiva desde há quase três séculos, comecem a escassear, transformando a tecnologia e as necessidades básicas das populações. Mais forte do que isso é a maior consciência por parte das populações mundiais, nomeadamente dos países dito desenvolvidos, de problemas graves como fome e guerras, compreendendo também, nomeadamente através da divulgação massiva pela Internet, das dinâmicas económicas que estão na base de tudo isto. Vejam-se os casos de países em guerra aos quais são fornecidas mais armas pelos próprios estados que vêm mostrar-se contra, ou os últimos escândalos com os interesses da indústria farmacêutica.
Num mundo cada vez mais consciente dos seus problemas, onde a todos os segundos as informações chegam-nos com maior precisão, muitas vezes contrariando, ou redimensionando as notícias que as próprias agências de informação nos trazem, de dia para dia. Cada vez mais, o sistema financeiro torna-se menos ajustado à maioria das pessoas, demonstrando aproveitar-se delas para fazer valer os interesses dos grandes detentores de capital. Pense-se um pouco nos casos do boom dos créditos pessoais e à habitação há alguns anos e da cada vez maior dificuldade no acesso ao crédito por parte das famílias e das pequenas e médias empresas.
Percebe-se também com isso, entendendo ao mesmo tempo que o sistema não deixa de necessitar dos milhões de pequenos depositantes, que a crise financeira, que retira incontáveis postos de trabalho e diminui radicalmente a capacidade financeira dos mais pequenos, obriga os grandes grupos financeiros a intensificarem as actividades entre si, construindo mais uns patamares no castelo de cartas, mas, ao mesmo tempo, tornando-se mais vulneráveis. Reflexo disso é que a queda de uma instituição financeira dum país pequeno como Portugal pode causar grandes estragos nas bolsas do mundo inteiro e provocar o colapso de outras instituições, algo que vai, certamente, começar a ver-se como efeito do caso GES.
Mais uma vez, não se trata de defender qualquer sistema político, ou económico, algo que já fiz notar nalguns artigos que tenho escrito, mas sim dum repensar do que é o sistema financeiro e para que é que ele serve. Enquanto o sistema financeiro existir para fazer crescer fortunas e não beneficiar verdadeiramente a sociedade, outros casos, cada vez maiores e mais pesados, irão surgir, criando, numa visão dantesca, a queda final do sistema e a obrigatoriedade de começar tudo do zero. Fugindo um pouco ao tema, mas entrando mais na minha área de trabalho, o sistema financeiro mundial não está a ser trabalhado para a evolução das populações, nem do mundo, apenas para alimentar egos. Não digo, jamais, que devemos ter todos uma parcela igual e acesso a tudo indiscriminadamente, até porque defendo que cada um deve ter aquilo que merece e o merecimento vem da dedicação e do esforço, mas acho que todos beneficiaríamos em focar o desenvolvimento financeiro num pressuposto mais humano e menos arcaico como é o ego e o poder. Contudo, para isso, é também necessário que nós, enquanto seres humanos, façamos o mesmo.