Primeira crónica no Repórter Sombra e sinto o mesmo peso de quando tive de escrever o meu primeiro artigo de opinião. Não tinha tema, tinha liberdade… não tinha assunto. Editava no A Capital e fui salvo pelo 11 de Setembro.
Felizmente, não é provável que um avião seja usado como míssil, numa grande vinha dum multinacional do sector e situada na Califórnia, por um grupo de terroristas islâmicos em cruzada contra o álcool. Magicando, olhei para um caixote de tangerinas e zás! Tenho tema. Irás perguntar-te: O que têm as tangerinas a ver com vinho? Como não sei o grau de interesse e de literacia vinícola de quem me lê, tentarei ser didáctico.
Há várias formas de encarar o vinho, desde a repulsa/aversão/condenação, ao mais legítimo gosto/não gosto, dos curiosos de coisas novas, aos fiéis de alguma coisa. Há ainda os enochatos, que passam um jantar a impor o tema da conversa: castas, composição dos cachos, ou às características climatológicas do ano de 1999, na sub-região do Douro Superior, mais concretamente na freguesia de Muxagata.
O vinho pode ser muitas coisas e a mais saudável e feliz é o prazer sem dependência, nem preconceitos. Seja encarado apenas como produto alimentar, «amigo» desinibido, ou filho de paixão, os vinhos conhecem modas. Há tendências e, se num determinado mercado um produtor de referência tem sucesso com um estilo, gera-se a clássica perseguição. Há uns anos, no Alentejo, era um mar de uvas tintas, mesmo em locais onde as brancas eram a tradição. Anos depois, aumentou a procura de brancos e a produção seguiu a vontade do consumidor. Isto não é bom, nem mau, a qualidade dum vinho não se mede – ou não se mede apenas – por alinhamento com a moda. O critério que mais prezo e valido como certo – em alguém – é o gosto/não gosto.
Se fores suficientemente curioso, compra, mais ou menos ao calhas, vinhos brancos alentejanos e de produtores com reputação de seriedade e de reconhecida competência enológica e comercial, fáceis de encontrar nos supermercados. O mais provável – atiro um número ao ar – que em dez vinhos brancos, com estágio em madeira (a madeira permite uma micro-oxigenação, confere estrutura, aroma e sabor) sete vão ter «cheiro» (palavra proibida no meio) de tangerina, com alguma manteiga e umas nuances de fumo. Não, não é adicionado qualquer composto, xarope, pozinhos, nem tangerinas, ou suas cascas ou sumos. A videira é uma trepadeira muito sensível e que absorve o mundo que lhe está à volta. Portanto, a parreira pode mostrar essas características cítricas.
Contudo, há uma outra coisa que pode o retrato, que são as leveduras. As leveduras existem na natureza e é, por isso, que temos vinho, porque entraram num recipiente com sumo de uva e começaram a trabalhar, a transformar o açúcar em álcool. A humanidade bebeu, gostou – provavelmente pelos efeitos etílicos – e aprendeu a reproduzir a natureza. Os puristas – ou uns puristas menos móveis – deixam que o mosto se resolva, que as leveduras sejam autóctones e ajam livremente no mosto. Porém, a generalidade dos produtores opta por leveduras comerciais, que dão uma muito maior garantia, segurança de qualidade e – podem ou não, conforme a sua «natureza» – fazer realçar determinados aromas e sabores.
As tangerinas invadiram os vinhos alentejanos e não foi por acaso. O Alentejo é uma terra quente e onde muitas vezes os solos têm pouca acidez – o ácido confere a frescura natural do vinho. Indicar o caminho dos citrinos é aproveitar a frescura que essas frutas transmitem aos sentidos e ao cérebro. Por exemplo, na Nova Zelândia – hoje há produtores a enveredar por outras opções – a casta sauvignonblanc era trabalhada para ser maracujá. Um dia, uma amiga que nunca provara um vinho branco neozelandês foi apresentada por mim a alguns néctares – maracujá + maracujá + maracujá + maracujá = a maracujá. O público tende para os vinhos frutados – geralmente mais fáceis de agradar – e em países do chamado «novo mundo», sem o peso de tradições seculares no fabrico e consumo da velha Europa, o caminho da fruta é o mais certeiro. Não é bom, nem mau, é assim.
Disse-me a amiga depois da prova:
– Se é para beber sumo de maracujá, bebo sumo de maracujá.
Simples e com tanta razão, quanto o seu oposto. Atenção, eram todos vinhos muito bons. Em termos de gosto pessoal, não me interessam e nem sou grande comedor de fruta tropical. Nos brancos frutados, tendo para os citrinos. A laranja é a minha fruta favorita, seguida do limão, da tangerina, da toranja… Quando escolho um vinho, vou à procura da árvore das tangerinas? Não.
Segunda parte, a madeira. Percebeu-se – há muitos, muitos, muitos anos – que a permanência do vinho em vasilhame de madeira – de várias espécies, origens, tanoarias, tosta (queimado – é mal dito) e dimensão – acrescenta valor. Assim, um estágio numa determinada madeira, dum determinado tamanho e por um sábio tempo vai complementar o que a fruta é e o que a levedura ajudou – além doutras operações vitícolas e enológicas. Pois, é aqui que chegamos ao Alentejo, concretamente aos brancos. Pela dimensão da propriedade e grau e percentagem de massa crítica, a região cerealífera hoje ganha a vida com o vinho e fá-lo duma forma muito profissional. Se o consumidor quer tangerinas e a gulodice da manteiga levemente fumada, pois que seja. Repito e sublinho: não é mal, não é pecado, nem traduz qualidade, ou falta dela. Há uns meses, participei num júri formado por pessoas com diferentes níveis de conhecimento e relação com esta matéria – o que tem a vantagem para o produtor balizar a pontaria, pois aproxima-se do padrão médio do consumidor e não dos intelectuais. Num formato normal de concurso, as mesas de júris não provam todas os mesmos vinhos e normalmente, no início, é servido um vinho a todos os jurados, em que cada um dá a sua nota, permitindo aferir e estabelecer balizas de avaliação.
Atenção! Todos os vinhos são provados às cegas, não se conseguindo sequer deduzir o formato da garrafa. As provas cegas têm vantagens e desvantagens. Sou muito crítico, mas reconheço-lhe a validade da frase de Winston Churchill: “A democracia é o pior sistema político, com excepção de todos os outros.”
Fechada a ronda básica, procede-se a uma finalíssima, em que os três vinhos mais pontuados são julgados por toda a gente. Serviram-se, então, os brancos. O primeiro com um agradável aroma a tangerina, notas amanteigadas e um fino toque de fumo. O segundo com um agradável aroma a tangerina, notas amanteigadas e um fino toque de fumo. O terceiro com um agradável aroma a tangerina, notas amanteigadas e um fino toque de fumo. Quem disse que eram todos alentejanos acertou. Todos de produtores de excelência, três belíssimos vinhos do ponto de vista técnico.
Os concursos valem o que valem, desde os de topo aos mais pequeninos e anónimos. Os jurados e as suas avaliações exactamente o mesmo. Num painel com uma forte presença de enófilos de exclusivo prazer, o resultado foi a confirmação do que quer o consumidor. Não será por acaso que a percentagem de vinhos com indicação de proveniência e data de colheita tem de cerca 40% de alentejanos.
Dentro de um ano, ou dois, ou três, talvez venha a moda da banana. Agora é a época das tangerinas.