Camarate é tão próximo de Lisboa que até se confunde com a própria cidade. Hoje tem acessos, arruamentos, infraestruturas e todas as condições para poder ser um local de vida quotidiana, como outro qualquer. Há uns anos era uma zona árida e inóspita. Parecia um enclave e encontrava-se isolado. Fervilhava de vida, mas era tão cinzenta que o sol não chegava a todos. Havia muitas pessoas, jovens e crianças que nunca tinham frequentado a escola.
A vida desenrolava-se de modo natural, onde o imediato era vivido intensamente. Os caminhos eram de terra batida e as casas, clandestinas, pouco mais eram que barracas onde foram acrescentados telhados convencionais. Em muitas delas chovia e o piso era tão lamacento como no exterior. As camas eram improvisadas e as cobertas eram os inúmeros corpos que partilhavam o espaço. Viviam quase em modo comunitário. Nas traseiras destas habitações estava grande parte do sustento: as hortas.
Era uma economia de subsistência e a economia de mercado dava os seus primeiros passos. O burro, que era de todos, carregava nos seus alforges, os bens preciosos que eram vendidos nos mercados mais próximos. Comiam essencialmente caldos de couve e batatas. Também havia ovos, que as galinhas, encurraladas numa capoeira rudimentar, na parte de baixo dos bancos corridos, colaboravam. Eram poupadas porque a carne era um bem raro e só em dias de festa. O que se passava na capital era-lhes totalmente desconhecido.
Um dia foram invadidos por um grupo de gente nova, animados de um espírito alfabetizador e solidário. A única casa de pedra, a sério, era o centro onde se reuniam e onde as tomadas de decisão aconteciam. “Viemos ensinar a ler e a escrever”. Um espanto geral! “Para quê? Serve para alguma coisa?” “Quem sabe ler e escrever não se deixa enganar e encontra trabalhos melhores. Querem que os vossos filhos vivam sempre assim?” O entusiasmo foi geral.
A Cesaltina até conhecia as letras, sabia assinar o nome, mas nada mais. O Humberto nunca tinha visto um livro a sério, só o jornal, nas feiras onde ia vender. As crianças eram puros diamantes prontos a serem lapidados. Era um trabalho apaixonante e complicado. Três vezes por semana aquela casa estava preparada e aberta ao conhecimento. Contas não eram segredo para os mais velhos, mas as letras ainda pareciam assustadoras.
Lenta, mas mesmo muito lentamente a tarefa ia dando os seus frutos. Os alfabetizadores, amorosamente tratados por professores (que era uma profissão muito estimada e honrada), todos os dias avançavam um passo e retrocediam dois. Contudo, a persistência de todos, que ninguém desistiu, acabou por dar frutos. Sem luz eléctrica, só a candeeiro de petróleo, as letras alinhavam-se umas ao lado das outras e faziam carreirinhos certinhos de palavras e de sentidos.
Nunca tinham visto o mar e foi organizada uma ida à praia. Foi como que uma viagem de finalistas, uma recompensa pelo esforço dispensado. No entanto havia uma contrapartida. No regresso era obrigatória uma composição. O autocarro foi pago com o dinheiro dos alfabetizadores (ainda não se falava em voluntariado) e o dia foi de descontracção e brincadeiras. A primeira reacção foi de medo, das ondas, do líquido e também do sol que picava de maneira diferente do campo. A areia não era a terra e era bonita e limpa. Os mais velhos pareciam crianças e o dia foi aproveitado ao máximo. Voltaram cansados, mas satisfeitos.
Um dos mais novos fez a seguinte composição, numa letra muito direitinha e redonda, provavelmente escrita com a língua de fora: “No domingo fomos à praia. A praia tem muita água, muito sol e muita areia. A praia também tem muitas pessoas que falam alto e jogam à bola. Eu não gostei nada da praia.”
É suposto isto ser verdade ou não passar de uma estória, surreal, inventada numa noite de insónias apenas para rotular os camaratenses de pobres e burros?
Há que estudar, ler, cultivar a mente para não cair no disparate quando se escreve/opina sobre algo que não se conhece.