Ao contrário do que muita gente pensa, talvez a maioria, o vinho rosé não se faz juntando branco com tinto. O que dá a cor ao vinho é a pele da uva. Se o sumo (mosto) duma variedade tinta não conviver com as películas, o resultado será branco.
Em Champanhe, designam os seus vinhos como blanc de blanc (branco de brancas) e blanc de noirs (branco de tintas). Fazem rosados, mas têm o bom-senso de não produzirem tintos – claro que esta é uma opinião pessoal, pois penso que taninos e bolhinhas não dão bom resultado. Porém, há quem goste e os crie, nomeadamente na Bairrada.
Ainda em relação à cor, existe um pequeno número de uvas tintas cujo sumo é avermelhado, ou arroxeado. Dois exemplos: a alicante bouschet, típica do Alentejo, e a sousão ou vinhão, designadas nestas duas formas, conforme se for na região do Douro, ou dos Vinhos Verdes. Na região de Lisboa, a denominação Encostas do Aire (nome estranho e pouco explícito, melhor seria designar-se por Ourém), o palheto é o orgulho da terra.
Contudo, há quem junte brancas com tintas. A esses vinhos dá-se o nome de palhetos, ou palhetes (prefiro a primeira versão). De acordo com a legislação, o branco não pode ultrapassar os 15%. Em tempo, houve – provavelmente haverá produção residual – um vinho na Vidigueira designado por “petroleiro”. Percebe-se que o resultado estará em torno da cor da romã, para o mais claro, levemente alaranjado. Nunca provei, nem vi, chego à conclusão pela tez do petróleo dos antigos candeeiros.
Confesso que não percebo por que há tão pouca gente a fazer palhetos, sobretudo, quando as produções de nicho matam a sede a quem deseja novidades. O grande público talvez possa não ter grande interesse, mas microproduções são valorizadas pelos enófilos militantes e vendem-se em instantes.
Vários escritores citaram os vinhos palhetos, como Aquilino Ribeiro, Camilo Castelo Branco, Gil Vicente e Júlio Dinis. Eça de Queiroz – que me lembre – não refere especificamente os palhetos. Nas suas obras, são imensas as referências a vinhos e dois têm um papel fundamental: o vinho de Tormes e o Colares.
Pelo que li, há uns tempos num artigo no jornal Público, Tormes é terra que não existia, mas uma invenção de Eça de Queiroz, em A cidade e as serras. Porém, o termo ficou e transformou-se em topónimo verdadeiro. A casa e a propriedade do romance eram suas, a Quinta da Vila Nova, no Concelho de Baião – região dos Vinhos Verdes. É propriedade da Fundação Eça de Queiroz, que vende o vinho de Tormes, referenciado no livro. No entanto, o vinho que se vende em Tormes é branco. Contou-me a mulher do neto do escritor que o vinho servido no seu casamento foi um palheto.
Penso que na região dos Vinhos Verdes – onde até há poucos anos a maioria dos encepamentos era tinta, a casta vinhão, muito rústica, agreste e violentamente ácida – a junção com branco servia para suavizar. No entanto, confesso que não provei nenhum palheto daquela região.
Com a desgraça da filoxera, no século XIX, a produção caiu drasticamente na Europa. Ainda hoje, regiões – embora não tendo a nomeada, ou a importância de outras – nunca mais conheceram videiras. Uma vez que o pulgão não sobrevive na areia, as zonas arenosas ganharam projecção. Em Portugal, Colares fez furor.
Hoje, os vinhos de Colares são branco e tinto, das castas malvasia de colares e ramisco – ambas têm uma percentagem mínima de 80%. Porém, em tempos estes néctares do Concelho de Sintra eram palhetos ou também eram palhetos.
Enquanto o vinho de Tormes referido numa só obra de Eça de Queiroz, o vinho de Colares é “omnipresente”. Este escritor põe-no em pé de igualdade – talvez um pouco acima – dos Bordéus, Borgonha, Champanhe e Reno em O mandarim. No total, são 12 obras com referências, além de correspondência.
No quadro “O grupo do Leão”, de Columbano Bordalo Pinheiro, pintado em 1855, o vinho que se vê poderá bem ser um palheto de Colares. O restaurante Leão de Ouro ainda existe e situa-se junto à Estação do Rossio, em Lisboa. A pintura está exposta no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado.
Acerca do Colares, atribui-se a Eça de Queiroz uma afirmação divertida – penso. “Este vinho está estragado ou é Colares novo!”
Há uns tempos, não mais de dois anos, provei um Colares tinto acabadinho de fazer. Uma coisa horrorosa! Disse-me um enólogo que um vinho de ramisco novo sabe a “vomitado de alho”. Com efeito, estes vinhos precisam de tempo, pelo menos uns dez anos para se acalmarem, nomeadamente a adstringência. Já bebi de 1911 e de 1933 e estavam óptimos.
Voltando ao palheto, no filme O pátio das cantigas, realizado em 1942 por Francisco Ribeiro (Ribeirinho), o alcoólico Narciso Fino (Vasco Santana) prega um prego, para fazer um estendal, na parede da casa do ricaço do bairro, Evaristo, que era droguista. Quem não conhece a expressão “Oh Evaristo, tens cá disto”?
O russo que vive no bairro avisa-o para ter cuidado, pois poderia acertar num cano da água. Ora, o prego devia ser tão comprido que fura além da parede, indo acertar num barril de vinho do Evaristo.
O russo quis chamar os bombeiros, mas Rufino diz-lhe:
– Não chama nada, que isto é vinho.
– Vinho? Então isso é milagre!
– Não é milagre, é palheto!
Uma vizinha que ia encher um cântaro de água ao fontanário é avisada por Rufino.
– Não seja trouxa, venha antes aqui à fonte buscar vinho.
A notícia corre depressa e as gentes do pátio atestam-se com o palheto do Evaristo. Enquanto a pilhagem decorre, o droguista termina a refeição com um valente trago e exclama:
– Deste já não há mais!
E não havia mesmo.