Há uns anos, trazia na mochila peças de relógios – tinha desmontado todos os que encontrei no meu caminho. A esperança tinha-me sussurrado promessas impossíveis em que eu acreditei, mas nada te trouxe de volta. O tempo não o permitia. Ajustei contas com ele: matei todos os seus representantes.
O teu olhar a partir, e os ponteiros continuavam a marcar a passagem da vida. Que absurdo! Eu sem perceber: como é que o mundo continuava a girar quando os nossos relógios tinham ficado parados? Eu sem perceber: como era possível perder-te quando todos os outros pareciam estar a encontrar-se? Eu sem perceber: lá fora o Verão está tão quente e nós por dentro somos um Inverno tão frio.
E no entanto… No entanto, os relógios continuaram a somar anos e agora já não falta muito para viver mais anos sem ti do que vivi contigo.
Não: já não falta muito para viver mais anos com a tua perda, do que vivi com a tua presença. Viver com a tua perda é diferente do que dizer que vivo sem ti. Não são sinónimos, só são peças inevitáveis do mesmo puzzle.
Mas penso-te todos os dias.
As saudades não são escravas da realidade. As saudades também nos doem naquilo que não foi, naquilo que poderia ter sido, no que nunca conhecemos mas somos capazes de imaginar, de imaginar com tanta força que sentimos na tez e na língua e na vida, que sentimos que recordamos em vez de inventar.
Mas invento-te todos os dias.
Ainda me queima o teu olhar a partir. Ainda me rasga a tua ausência. As ausências não são ar. Não são leves, abstracções, inexistências, esquecimentos. As ausências importantes não são ausentes. Pesam. Pesam mais que toneladas, pesam mais que qualquer medida quantitativa, podem ser insustentáveis. Inventar-te é pôr mais carga nesse peso. Pensar-te é conseguir ir deixando pedaços da dor para trás.
Abandonei essa mochila com peças de relógio quando decidi que não me bastava matar por vingança. Quis ser dona do tempo. Prendi-o várias vezes a fotografias que imortalizaram mentiras, segundos que duraram décadas, destinei-lhes prisão perpétua. Algumas fotografias roubei-as a álbuns alheios: as tuas. Tive de as roubar – tinha medo que as memórias fossem ficando deslavadas, se fossem diluindo no meio da vida. E antes que a vida me roubasse também as lembranças, roubei-as eu primeiro para as eternizar. Chegará o dia em que não vou conseguir preservar as vozes que irão emudecendo ao longo da distância, mas por enquanto creio lembrar-me das gargalhadas. Por enquanto, ainda me lembro de ti. Talvez não de ti todo, de tudo em ti; talvez me falhem algumas partes, talvez imagine outras, talvez tenha lembranças de recordações de memórias que quis evocar e que sem querer falseei, e que sem querer fantasiei. Mas ainda não me és apenas um nome importante, não me és apenas um ideal longínquo, não me és apenas uma dor permanente. Ainda te conheço. Ainda me lembro de ti.
Agora não tenho mochila nem prisões. Larguei as manias de grandeza e abri a cela ao tempo. De nada me adiantava fingir que poderia ser de outra forma. Deixei que voltassem os Verões, os Invernos, os encontros e as gargalhadas. Penso-te todos os dias. Invento-te todos os dias. Esqueço-me de bocadinhos todos os dias. Lembro-me de outros todos os dias. Hoje, só me resta ficar despida de tudo, só me resta o que ficou preso à pele e à alma. A última vez que te toquei eras cinza e osso, eras pó, e voaste. Nunca nada mais haverá de ti, por mais tempo que se prenda ou se queime; apenas imagens em caixas, memórias em sorrisos, sangue nas veias. Agora a vida continua, o mundo gira, e tu tornaste-te parte do mar e do vento. Mas eu estou convencida de que ainda te sei.