“Soupe de tomates à La Gasconne, servida com manjericão fresco e uma fatia de tartelette méridonale, feita em pâte brisée fina como bolacha e enriquecida com os aromas de azeite, anchovas e os saborosos tomates locais, guarnecida com azeitonas e levemente tostada de forma a produzir uma concentração de sabores quase impossível. (…) A minha mãe cozinhava conjuros e filtros amorosos, eu sublimava tudo numa alquimia mais doce”
– Joanne Harris, Chocolate
Somos seres de emoções, mas também “somos aquilo que comemos”.
A cozinha é pura alquimia. Quem diz o contrário desconhece o que é transformar comida em alimento. Dar-lhe afecto. Vida. Memória e alegria.
Fechemos os olhos. Certamente, que nos vem à memória os cozinhados que a mãe preparava para o almoço ou jantar. Os pequenos-almoços tardios (brunch, num termo mais actual), aos Domingos de manhã. A forma como eram preparados os alimentos, como se de um ritual se tratasse, o cheiro que inebriava miúdos e graúdos, vindo da cozinha. Aquele bolo acabado de sair do forno, a fumegar e a aliciar os olhos.
“Os olhos também comem”.
Tudo isso é memória afectiva. A nossa relação com a comida está directamente relacionada com as nossas emoções e o nosso bem-estar. Algo que traz boas lembranças pelo conforto e segurança que transmite.
Então, porque é que é tão difícil manter esta conexão entre comida e memória afectiva? E, em simultâneo, se querer desvincular do prazer que é comer?
“Fazer um refogado com as cebolas e as chalotas, em azeite e rosmaninho fresco, cogumelos e um pequeno alho-francês. Juntar um punhado de tomates secos, manjericão e tomilho. Cortar quatro anchovas ao comprido e deixar fritar durante cinco minuto.”
– Joanne Harris, Cinco Quartos de Laranja
Lembro a minha infância e trago à memória os tempos passados na cozinha. Recordo, com alegria, as mulheres da família que, nas ocasiões festivas, se juntavam e, entre conversas e risos, amassavam, tendiam, dobravam e adoçavam os serões de Inverno. Acredite quem quiser, era aqui que, neste local, passavam a moral, as regras comportamentais, a ética social e, ou o civismo. No fundo, humanizando, sem o saber, sem a consciência deste processo iniciático, mas de extrema importância para a construção da pessoa que eram os mais novos. Pura alquimia! Transformando diamante puro em pedra filosofal!
Talvez, por isso, seja incompreensível para quem nunca o entendeu dessa forma. Para aqueles que nunca privaram de tal deleite. Ou, para aquelas que nunca tiveram o privilégio de se conectar com a essência, em si mesmo, através da preparação dos alimentos e da comunhão entre as mulheres da família. Um privilégio ter estas memórias e, mais do que isso, haver alimentos para comer.

“Tinha resistido aos anos. Cortou-o com a faca; a rolha por baixo ainda estava intacta. Por um momento o aroma foi tão imediatamente acre que tudo o que podia fazer era suportá-lo de dentes serrados, enquanto aquela vontade se lhe impunha. Cheirava a terra e era um pouco azedo, …, com uma intensidade que lhe fez lembrar a máquina de cortar legumes e o alegre e penetrante cheiro de batatas recém-desenterradas.”
– Joanne Harris, O Vinho Mágico
Portugal tem, de Norte a Sul do País, a maior e mais refinada oferta em termos culinários. Basta afirmar que esta “dieta mediterrânea”; sempre contemplada nas mesas de cada casa portuguesa, primazia aos pratos tradicionais que promovem cada região; é um chamariz para qualquer pessoa que visita esta Terra Lusitânia.
E, onde quer que se vá, comida e bebida são essenciais para uma conversa entre amigos, para uma refeição em família, para o encontro de gentes e a partilha de bons momentos.
Somos assim, gentes de hábitos enraizados, onde o prato principal é servido com a melhor companhia. Por isso, é proporcionadora de lembranças felizes! Essencial, não ao invisível dos olhos, mas ao que se vê, sente, cheira e saboreia. Nostalgia de comida conforto.
“Pois, para mim, comida é sempre comida, um prazer para os sentidos, uma cuidadosa construção efémera, como o fogo-de-artifício, que às vezes dá trabalho, mas que não deve levar-se muito a sério. Não é arte, por amor de Deus! Entra por um lado e sai pelo outro.”
– Joanne Harris, Cinco Quartos de Laranja
À medida que o quotidiano se tornou mais rápido, a fast food, refeições pré-cozinhadas, a globalização e a tecnologia permitiram o acesso imediato a alimentos que, anteriormente eram sazonais. Quebrando a verdadeira degustação em tempo próprio dos vários produtos, ansiosamente esperados para se adquirir, sentir, comer. Lambuzar.
A exigência profissional, no seu passo acelerado impede que as refeições sejam feitas pausadamente, acutilando o acto de comer e uma deglutição propícia a uma boa digestão. As restrições alimentares e as preocupações à volta duma alimentação saudável, fizeram com que se perdesse a ligação com os alimentos, e consequentemente a relação das pessoas com a dieta escolhida um confuso estado de coisas. Criou-se, assim, uma relação de inimizade para com a comida, dissociando o prazer a uma necessidade básica, alterando as memórias afectivas e fragilizando as emoções de satisfação, conforto e segurança que a comida feita com amor nos dá.
A preocupação sobre o tema alimentação/nutrição/dieta, os condicionamentos associados à restrição alimentar, à sustentabilidade no consumo de carne, e uma misoginia sobre o excesso de peso e a obesidade ofereceram um misto de dietas e milagres em prol duma alimentação saudável e um corpo em mente sã.
Há quem se refira a esta “comida conforto” e a sua ligação afectiva a algo de coisa ruim. Aos olhos dos nutricionistas e “personal coach” uma tragédia mundial. O curioso é que, se outrora, as memórias com a comida levavam ao anteriormente dito, onde, a inexistência de fast food, ou pastelaria e açúcares de absorção rápida estavam ao dispor (porque eram poucos os jovens que tinham dinheiro para gastar na escola), e onde, em cada refeição se incluía sopa, salada, água e fruta, como é que se pode “culpar” um tempo como motivo para os distúrbios alimentares, obesidade mórbida ou desnutrição? Ou, será que a relação emocional que os desenvolve é o ponto fulcral a resolver? Ainda assim, e em qualquer dieta que se escolha para si, é possível criar memórias e, só a si cabe criar a empatia necessária para que tragam felicidade.
Recordo da caixa de chocolates Regina que o pai trazia e que ficava, lá no alto do frigorífico a “olhar” para nós! Ninguém tirava sem autorização. E, não existia a compensação: “se comeres os brócolos ganhas um chocolate”. Era algo mais parecido a isto: “enquanto não comeres a sopa não te levantas”. Mesmo que nada mais houvesse para comer a seguir.
É que a sopa era deliciosa…a saber a legumes, quentinha e confortável. Ou, canja de galinha, para os resfriados de Inverno e, que nos transmitia uma sensação de segurança real. Ainda hoje, me transmite.
Nada disso interessa para o conceito de comida afectiva. Como é que tem este poder sobre a nossa memória e pode contribuir para a nossa felicidade?
No fundo, reporta-se àqueles pratos simples, preparados com alegria e tranquilidade no conforto das nossas casas. Lembranças gustativas que de imediato, e logo após a primeira colherada, nos dão sentimentos associados ao colo, à segurança e afecto.
Por isso, nos fazem felizes.