Violência de Bancada

O futebol é o desporto rei em Portugal, é o único desporto capaz de mover multidões até aos estádios das principais equipas da nossa praça, é o único desporto capaz de colar milhões ao ecrã. A paixão é inegável, tanto como é indescritível, quem a tem simplesmente sente-a, quem não a tem, nunca a irá perceber, é um sentimento e, tal como todos os sentimentos, não é palpável, anda por aí, a fazer-nos viver vários estados de espírito numa combustão de nervos e emoções que reagem a determinados estímulos. Tudo normal. Normal até ingressar no âmbito dos extremos e dos fanatismos. Premissa inicial: o desporto não mata, o futebol não mata, fanatismos matam, as pessoas matam.

Não há nenhuma temporada em que, em algum lugar do mundo, em alguma competição, não exista pelo menos um episódio de violência que manche a festa do futebol. A maior parte deles acontece nas bancadas, nas imediações dos estádios, na vivência excessiva daquilo que deveria ser sempre considerado apenas um desporto. Porém, atenção, não é o futebol que gera isto, não é um desporto onde o objectivo é marcar mais golos do que a equipa adversária que gera insultos, agressões e, em última e mais gravosa instância, mortes. O que gera tudo isto é a cultura. A cultura de cada dirigente, a cultura de cada adepto, a cultura de cada claque e a cultura de um país, porque não é por acaso que há violência crónica em alguns locais e não há noutros. Só este ano a Liga grega de futebol já foi suspensa por três ocasiões, devido a actos de violência, um dos quais envolveu o técnico português, Vítor Pereira, que comanda a formação do Olympiacos. No Egipto, desde 2012, depois de pesados episódios de violência entre adeptos de equipas adversárias, num jogo entre o Al-Masry e o Al-Ahly que causaram 74 mortos e centenas de feridos, que todos os jogos de futebol eram disputados à porta fechada. Decisão que foi revogada pelo Governo egípcio no final do ano de 2014, com o resultado a ser catastrófico: cerca de 20 pessoas morreram e várias dezenas ficaram feridas em consequência da tentativa, por parte de adeptos, de forçar a entrada no estádio. O campeonato foi suspenso de imediato depois disso. Portugal, felizmente, ainda não presenciou hecatombes desta dimensão, no entanto, também já teve a sua conta este ano, com sete feridos e dois detidos, no derby lisboeta entre o Benfica e o Sporting. Os ferimentos aconteceram durante o jogo, devido ao rebentamento de petardos e arremesso de tochas luminosas na altura do golo do Benfica.

Todos estes episódios – e podiam ser muitos mais – são de lamentar, mas ilustram o lado negro do futebol, deixam à vista de qualquer um a ditadura da violência de bancada. E já que é na bancada que isto acontece, vamos até lá, ao bom estilo de Hunter J. Thompson e do seu jornalismo Gonzo, para um resumo, no mínimo diferente, daquilo que foi, ou poderia ter sido, o Belenenses x Benfica de dia 18 de Abril de 2015, no Restelo:

Faltavam ainda cerca de duas horas para começar a partida, mas o aquecimento já tinha começado. “Uma bifana e uma imperial!”era uma das frases mais ouvidas nas imediações do estádio, numa das típicas roulottes que estacionam estrategicamente para fornecer a “táctica” aos adeptos com mais fome, ou sede.  Eram poucos os que se davam ao trabalho de descer a rua para ir ao pastel de Belém, ainda assim alguns ainda traziam os sacos que denunciavam a submissão ao prazer da nata. Eram pessoas de fora provavelmente, pensavam os velhos do Restelo, moídos de tanta azáfama a um sábado. A claque chegou. Aquilo que ainda se poderia considerar um ambiente relativamente calmo foi rapidamente transformado em cânticos ruidosos de apoio à equipa visitante. Os mais curiosos ficavam a observar aquela organização, os mais indiferentes continuavam a beber as suas cervejas ao mesmo ritmo que o relvado era regado pela última vez antes do início do encontro.

Já dentro do estádio, vislumbra-se um pouco de tudo, um misto de géneros, gerações e estilos a ocupar as várias cadeiras disponíveis. Havia mais homens do que mulheres, mais pessoas entre os 30 e os 50 anos, mais simpatizantes do Benfica do que do Belenenses. As classes sociais não se distinguiam – e ainda bem – entre os cachecóis e as camisolas de apoio, ali, naquele momento quase que se podia afirmar que éramos todos iguais… só que não. Alguém se lembrou que os “filhos da mãe” dos tripeiros jogavam à mesma hora. Ao que parece, a claque também, começaram os insultos. Numa ironia quase lírica, a equipa de arbitragem é a primeira a entrar em campo, é a primeira e a única a ser julgada antes de entrar em acção.“Ladrão”, “palhaço”, “corrupto”, primeira frente de violência verbal injustificada, agora sim, sinto que estou num jogo de futebol. Ouve-se um apito, acho que era o inicial, mas também pouco interessa, não demorou muito até que aqueles “c*****” já estivessem a ganhar por 1-0 no Dragão. Que bonito vocabulário para as centenas de crianças presentes assimilarem. O padrão de normalidade associado ao vocabulário de baixo nível torna tudo ainda mais gravoso e sem nexo.

Já passou a primeira parte? Boa, hora de ir beber qualquer coisa. GluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGluGlu! Marcam-se muitos mais golos destes do que daqueles que importam, durante os noventa minutos de uma partida de futebol.

Fala-se do jogo, fala-se do Porto, fala-se que a próxima jornada é que vai ser, mas “já sabemos que está tudo comprado”. Fala-se pouco na verdade, a substância é sempre a mesma e a segunda parte já começou. Só houve tempo para mais uma explosão de alegria, ao que parece o Jonas marcou outro, boa. “É muito melhor do que aquele colombiano de…” enfim, vocês sabem.

Apito final. Resultado: 2-0. Violência: apenas verbal. Para a próxima há mais e, no Dragão, foi tudo igual.

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