Aconteceu ontem, dia dezasseis de Setembro.
O mar estendia o azul habitual, mesclado de verde paradisíaco que o tingia nos dias de sol, como nos vitrais das agências de viagens convidando aos lugares que nunca visitaremos (para quê, se temos igual aqui tão perto?).
Olhei lá para baixo: meia dúzia de veraneantes haviam calcorreado o caminho da falésia que a Sofia e eu percorríamos àquela hora-fronteira entre a manhã e o tórrido calor – um quarto para as onze – ou chegado ao areal antes de a maré encher, conseguindo passar para o lado semi-deserto da praia enfeitada de nacos de rocha amarela em erosão. Via-os banharem-se com a despreocupação de quem dobra o tempo ao ritmo a que a vida sempre deveria caminhar, o melhor que as férias de Verão nos podem oferecer. Também queria. Mas queria também captar algumas fotos daquela sensação em que não estava seguro de conseguir mergulhar.
Descemos, e ao entrar na praia, soubemos que o dia ia ser um daqueles momentos de Verão para recordar: calor na perfeita medida dos vinte e sete ou vinte e oito graus que naquela pequena enseada nos sabiam a trintas, não mais de quinze “praiantes”, três nudistas, uma rapariga em top less e nenhum adolescente (ou pré) na irritante idade escolar das bolas, raquetes, chapões salpicantes e conversas para ouvir em todo o areal (vantagens de poder frequentar o Verão depois de as aulas iniciarem) – somente crianças pequenas e adultos – e o azul-esverdeado a brilhar na maré-cheia espelhada à nossa frente. Soube também que naquela brecha da realidade, não iria comer a habitual bola de Berlim, mas era um sacrifício suportável para tamanha experiência.
Largámos os pertences, abrimos o chapéu e fomos ao banho. O fundão onde logo caímos precipitou o convívio com que a água do sul, fria durante todo o Verão, aqueceu até aos vinte e dois ou vinte e três graus para nos receber.
Voltámos para o sol, no curto areal que nos massajava o ego, para regressarmos à água minutos depois (dez ou trinta, pouco importa). Foi aí que me demorei uns vinte minutos. A última vez que tal tinha acontecido talvez diste já uma década. Foi então que aconteceu.
Dei algumas braçadas para o silêncio, e senti-me tal como via e imaginava de lá de cima, da rocha, os banhistas a nadar no paraíso, uma hora antes. Por ser raro acontecer este feliz encontro entre vivência e expectativa, ficou registado na galeria dos momentos inesquecíveis. Ter tal consciência no instante em que estava a ser vivido, entre mergulhos, braçadas e simplesmente abrir os braços, esticar as pernas e deixar-me estar virado para o céu, e ainda assim viver aquilo de que me tinha apercebido, é a vida em estado puro. Olhei para a rocha e um homem registava aquele momento – o “meu” momento – em fotografia. Mas era também o momento dele, como havia sido o meu quando lá havia estado a captar momentos de outros, tempos antes. Eu vivia aquilo que provavelmente ele estaria a imaginar que eu sentia, a folga de todas as preocupações, o tempo do meu jeito, do nosso jeito. Porque se quase tudo é vivido a dois, há experiências que são tão nossas como minhas. A Sofia teve a mesma consciência do maravilhoso dia de praia que nos estava a acontecer, mas é certo que não o viveu da forma exacta que eu o fiz. Tal como – e faço aqui uma correcção – o homem da foto não estaria a imaginar com precisão o modo como eu vivia cada mergulho nem eu acertei no que ele pensava; de igual forma, os paradisíacos companheiros de praia que eu captara de lá de cima não haviam experienciado o que eu vira nos seus corpos dourados a temperar a água, muito menos, a ínfima parte deste todo fixado nas fotografias que guardei.
Porém, sabemos do que estamos a falar, do suspiro arrancado às profundezas do desejo sempre que um poster ou um postal com um tapete de mar verde e uma praia deserta cruza o nosso olhar. E foi exactamente isso que aconteceu naquele momento inesquecível vivido ontem, o momento em que o tempo e o espaço coincidiram, expectativa e realidade, cenário e calor.
E no fim, o milagre que nos despertou para a vida: o badalo anunciador que num primeiro momento me atordoou para logo desenhar a forma da excitação nos meus lábios com a imagem de um sorriso: as bolas da praia! Naquele fim do mundo, apareceu Nossa Senhora carregando a arca dos desejos em esferovite. Na dúvida entre Kinder Bueno ou Alfarroba, resolvi-me pelo conselho da Santa e lambuzei-me (nunca como com uma bola de praia este verbo é empregue de uma forma tão verdadeira) com o típico sabor algarvio. Até a Sofia comeu uma bola, a tradicional, para fechar a manhã com chave de ouro. De novo a expectativa a cumprir-se, ou a superar a realidade. A Santa percorreu aquela descida para nos vender duas bolinhas!
Passava já do meio-dia e meia, quando abandonámos o lugar. O nome da praia não faz jus ao enquadramento descrito, mas é o que temos. De qualquer forma, um nome é só um nome e não determina em nada o que por ele é nomeado (excepto alguém que se chame Adolfo ou Lenine). Assim, a Praia da Coelha não tem culpa daquilo que lhe chamam, mas longe de ser a mais bonita daquela parcela do Algarve, ontem foi o lugar mais bonito do mundo.
Tal só foi possível com a Sofia. A confluência de acasos que concorrem para elevar certos momentos não se explica, mas tenho a certeza de que aqueles minutos no mar, ainda que sentidos de uma forma tão interior, estariam longe de ser o que foram (ou sequer de eu neles ter reparado) se a Sofia não estivesse ali. Na minha vida.
Guia, 17 de Setembro de 2021