O elogio dos brutos

Ei-los, os brutos, aqueles que sem decoro, sem requinte, vociferam cruezas a quem nada lhes perguntou.

Ei-los, os boçais, que à falta de maneiras, cospem rudezas,  venenos cortantes, àqueles a quem nunca falaram.

Ei-los, os grosseiros, que vomitam ruminadas palavras, infestadas de raiva e asco àqueles que não conhecem.

Ai, minha gente, quão longe da civilização vive esta gente! E no entanto, para quem o saiba interpretar, podem constituir fonte de eterno conhecimento. São um pouco como as crianças, com um caminho curto entre o coração e boca, mas sem a doce inocência destas.

Os amigos são delicados, dizem. Ou então não são amigos, dizem também. Não confundamos brutalidade com assertividade,  grosseria com sinceridade.

Um amigo deve ser capaz de nos dizer as coisas mais duras, se isso for necessário, para extrair o melhor de nós, esgotadas as inócuas e ineficazes delicadezas. Aqueles que nos conhecem bem e nos amam são os únicos a quem deveríamos dar ouvidos, para o bem e para o mal. Mais, os únicos em quem deveríamos confiar na sua apreciação desinteressada. Contudo, talvez o pudor os impeça, os faça medir as palavras, e contornando os ângulos agrestes, para não magoar, não ferir, não lhes permita chegar ao âmago da questão.

Os brutos não se quedam em tais preparos. Envenenados pelo próprio sangue, formado por plaquetas de ódio e glóbulos de violência, vocalizam horrores, na falsa esperança de libertar o mal de si, quando apenas contaminam o redor, para que os outros se sintam tão mal, senão mesmo pior, que eles. E atingem, sem dó nem piedade, regozijando da ferida aberta, da seiva que escorre, escarlate, pingando no chão. Sentem-se fortes na sua medíocre valência, no seu poderzinho, de quem nada vale, nada alcançou, e procura em desespero desmanchar o castelo de areia do outro.

E eu, estupidamente optimista, encontro-lhes uma elevada utilidade. Pelo menos são honestos.Não se vestem, como os velhacos,  de sonsices,  fragilidades, ardis e piedades, por tempo curto, claro, porque assim que lhes foge o chão, incapazes de manter o perfil dissimulado, explodem-se em agressões gratuitas, tanto maiores quanto maior o desconforto.  Os brutos vivem em contínuas agressões gratuitas, afinados, sem sair do tom.Os brutos são honestos, não porque sejam dotados da virtude, é apenas uma consequência colateral da inexistência de equilíbrio entre o aplauso da sinceridade e o ódio que sentem em si.

Portanto, sem véus de cinismo, os brutos são úteis, muito úteis.

A ser verdade o que dizem, promovem o nosso aprimoramento, talvez de forma mais efectiva, mas obviamente menos afectiva, que os amigos. O corte é mais marcante que o beijo.

A ser mentira, devemos sentir-nos, no mínimo galanteados: por nós invocaram a criatividade e a interpretação, ainda que distorcidas, exultaram ânimos, tornaram-nos objectos do seu sentimento.

Afinal, com tanta gente interessante e tanta coisa boa para fazer, vivem no nosso encalço, observando-nos, estudando-nos, medindo cada uma das nossas acções. Fazemos-lhes comichão. Devemos ser importantes. Talvez tenham descoberto em nós maravilhas que nem sabíamos que tínhamos. Talvez tenham descoberto em nós valores que valham a pena invejar, valores que nem sabemos que temos.

E de repente, sentimo-nos objecto de um elogio involuntário, tímido, muito retorcido,  recalcado mas muito reconhecedor da nossa grandeza. Como só os brutos sabem fazer, afinal.

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Comments 2
  1. Muito bom. Amigos verdadeiros dão e devem dar broncas. Ficar calado ou passar a mão na cabeça é inócuo.

    1. Concordo. Afinal, se for de facto nosso amigo, devemos esperar que nos diga tudo o que precisamos ouvir, e aceite aquilo que temos para lhe dizer, concorde-se ou não, que a decisão cabe sempre do próprio.

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