Mas tu foste sempre ficando

São infinitas as vezes que volto àquele quarto, àquele pedaço de ilusão que tínhamos inventado numa noite qualquer e que deixámos que se estendesse, alargasse, perpetuasse. Volto àquele quarto, àquela última vez de qualquer coisa que não quero compreender. Noites e dias a pisar o passado, a passeá-lo, a aluciná-lo, a amachucá-lo; vezes e vezes e vezes, tantas tardes e tantas horas e tantos pedaços de vida em que continuo a invocar essa memória, sem nunca estar perto da certeza de que existiu.

O teu corpo nu na varanda, exposto à luz da lua. A tua nudez não era importante para ti, mas para mim era um milagre. A luz do quarto apagada, e eu a observar as tuas sombras escondido, como um criminoso. Sentia-me pleno. Fumavas e pensavas. Em baixo, a cidade iluminada a amarelo e neon, um nevoeiro denso tornava tudo o que eu via num sonho. Tu surgias no meio do meu tudo, e eras uma profecia. Tu tão nua, tão brilhante, tão maravilhosa, o fumo à tua volta. Eu a desejar ter uma câmara fotográfica para te prender numa eternidade de papel, porque do meu corpo podias fugir sempre que tivesses vontade. Sempre que te apetecesse, mesmo que o teu cheiro ficasse sempre comigo. Fumavas e pensavas, de visão perdida na noite. Pela maneira como soltavas o fumo eu percebia que estavas a pensar, a tomar decisões, e de repente tive um medo absoluto que tivesses finalmente percebido o erro que eu era.

Viraste-te e viste-me. Durante muito tempo não afastaste a tua atenção daquele vidro fechado que nos separava, onde te vias e me vias ao mesmo tempo, os nossos reflexos sobrepostos num futuro impossível. Tu livre, o vento nos cabelos e o corpo triunfantemente exposto; eu preso, fechado, de boxers, incapaz de me libertar das convenções e das vergonhas. Não me chamaste. Voltaste a olhar para a cidade, retornaste para os teus pensamentos, e eu fui para a cama, no desespero de que já era pretérito tudo o que alguma vez poderíamos ter sido.

Numa relação há sempre alguém que ama mais, não é?

A cama fria. Eu a tocá-la à procura do teu calor, porque tinhas acabado de te levantar e era impossível que já não houvesse ali sombra de ti. O cheiro do teu cabelo, qualquer coisa. A tua pele ardia na minha mas o quarto estava glacial. “Volta”, repeti e repeti e repeti na minha cabeça até adormecer, os lençóis gelados a adivinhar a tua ausência, os meus olhos presos na porta, os meus olhos presos no momento em que entrarias, te deitarias de costas para mim e continuaríamos a ser. Só a ser. Acordei com o sol alto e tu fora da minha vida. Éramos um erro, tinhas visto finalmente. Um engano, apenas um trilho que te desviou do caminho que era teu destino. Querias mais, eu era tão pouco para tudo o que tu poderias chegar a ser.

E, no entanto, voltaste nessa noite.

Ficaste nessa noite.

E eu tão certo que na noite anterior tinhas percebido que nunca mais ficarias. Mas foste ficando noutras noites, noutros dias, noutras estações. Eu tão certo que o teu olhar já tinha mudado, que o tempo em breve ficaria parado. E tu continuavas aqui, devagar e sem pressa, cheia de sorrisos e de futuros. Até ao dia em que não ficaste mais. Não mais. Eu sempre tão certo que nunca ficarias e tão pouco preparado para quando não ficasses.

Agora volto àquele quarto, àquele pedacinho de perfeição antes de tu perceberes que não ficarias, mesmo que depois fosses ficando. Volto àquele quarto, àquele pedacinho em que eu te vi e fomos perfeitos por última vez, mesmo que depois da última tenha havido outras vezes. Eu com certezas que o teu corpo já conhecia o fim, mesmo que tenhas ficado todo este tempo. Até agora. Agora volto àquele momento que se calhar nunca existiu, e alucino outras histórias, outros finais, e amachuco-me, tantas, tantas, tantas vezes.

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