Contaram-me que no quarto de Joe apenas uma coisa chamou a atenção da polícia. Eles nem precisaram que revistar cada pormenor da intimidade do jovem depositada nos seus objectos. Em cima da cama encontraram uma caixa de madeira aberta, um pano solto, e uma embalagem de balas de um revólver comum, igual a tantos os que poluíam a paz deste meu bairro massacrado pelo esquecimento social. Algumas balas estavam mexidas, faltavam seis que provocaram olhares entre os detectives. Não havia dúvida, Joe era o culpado.
Muitas pessoas perguntam porque moramos aqui neste imundo mundo, como se tivéssemos escolha e como se na pobreza não existisse uma ligação sentimental com o nosso lar. Aqui há um submundo que assusta mas também vemos são daqui as pessoas mais extraordinárias. Joe, bem à sua maneira, é uma dessas pessoas. É normal vê-lo passear pela rua na maior descontracção que se permite a um ser humano, por vezes nú, por vezes a falar consigo próprio, desta vês com uma arma na mão. Então perguntei-lhe:
– Hey Joe, onde vais com essa arma não?
Perguntei-lhe duas vezes antes dele me responder
– Vou lá baixo dar um tiro na minha mulher, apanhei-a a dar umas voltas por aí com outro homem. Sim, vou lá baixo dar um tiro na minha mulher, apanhei-a a dar umas voltas por aí com outro homem. E isso não é correcto.
“Este Joe”, pensei para mim próprio. Era apenas mais uma cena dele igual a tantas outras. Mas o gajo pôs o bairro todo em alvoroço. Em pouco tempo já se ouviam vozes a espalharem pelo bairro a notícia com todos os pormenores. O único tiro com que Joe disparou contra a sua mulher, os gritos de aflição de quem viu, a curiosidade de quem ouviu, as correrias, os pedidos de socorro, o medo, o sangue, o cheiro a pólvora, a mulher morta no chão com o peito furado. E Joe? Descontraidamente voltava para cima, a andar com a sua arma mão. Que figurão!
– Hey Joe, ouvi dizer que deste um tiro na tua mulher. Tu atiraste neste, Deste um tiro na tua mulher e mataste-a!
– Sim, é verdade, eu apanhei-a a vadiar por aí, por aí pela cidade, então sim, dei-lhe um tiro porque apanhei-a a vadiar aí pela cidade. Peguei na minha arma e dei um tiro nela.
Aquela descontracção era desconcertante. Mesmo com todo aquele alarido uma pessoa não conseguia deixar de sorrir. O Joe era assim. Fazia sorrir com o simples facto de ser ele próprio e mostrar-se às pessoas. Eu não resisti…
– Boa Joe, vai lá baixo e dispara nela outra vez. – Respondeu-me com uma gargalhada.
Ele para as pessoas e as pessoas para ele, riam e sorriam e escondia assim os demónios que habitavam a sua vivência. Todas as pessoas em todas as partes do mundo, têm os seus demónios, mas neste bairro parece que os têm ainda mais. Só que o Joe, até este dia, sempre os soube esconder e era por isso alguém que com todas as suas excentricidades, passava pelos receios sem que estes se manifestassem nos outros.
Ah, o Joe! Mas que iria ele fazer agora?
– Hey Joe, para onde vais fugir agora? Para onde é que tu vais fugir agora?
– Vou para o sul, em direcção ao México, onde posso ser livre, onde ninguém me vai encontrar, onde não vai o carrasco, ele não me vai enforcar. É bom que acredites. Tenho que ir agora.
-Hey Joe, é melhor correres.
– Adeus a todos!
Foi a última vez que vi o Joe… E disseram-me que a bófia também nunca mais o viu.
Nota do autor: este conto é inspirado numa canção popular norte americana, Hey Joe, imortalizada por Jimi Hendrix, cujo legado me alimenta e assim homenageio.