Fundador da conceituada revista francesa Cahiers Du Cinéma e tomado, muitas vezes, como principal referência pelo grupo de cineastas impulsionadores da Nouvelle Vague, entre os quais François Truffaut e Jean-Luc Godard, o teórico e crítico André Bazin (1918-1958) preocupou-se, desde cedo, em instituir o cinema como janela para a vida e sobre a própria vida. Na sua obra magna Qu’est-ce que le cinéma? concentrou-se em firmar a sétima arte como linguagem, meio para captação mecânica e interrupta de imagens, a imperar sobre a passagem do tempo. E o que terá André Bazin que ver com Os Melhores Anos das Nossas Vidas, a 32ª longa-metragem do conceituado realizador William Wyler? Na verdade, existem alguns pontos neste filme que se aproximam da teoria baziniana, e não são poucos.
Para além de ser uma das obras cinematográficas preferidas do autor francês (algo omnipresente no seu livro), Os Melhores Anos das Nossas Vidas (1946) é um filme triunfante, vencedor de 7 Óscares da Academia (derrotou o clássico de James Stewart, Do Céu Caiu uma Estrela), que embora encerre a sua narrativa num happy-ending um quanto frouxo e extremamente questionável por estudiosos, não deixa de ser um retrato realista dos primeiros dias tensos do pós-segunda guerra mundial, em terreno americano, e daquilo que era pedido pela audiência, de uma resolução aos conflitos, para espalhar a mesma ‘felicidade’ fora do ecrã.
Admirado inclusive pelos seus aspetos melodramáticos (género imperante na década seguinte, os anos 50) e pela subtil crítica a políticas de cariz governamental, Os Melhores Anos das Nossas Vidas conta a história de três indivíduos que regressam à sua terra natal – a fictícia Boone City – depois de participarem no conflito armado: Al Stephenson (Fredric March), um banqueiro de meia-idade que chega a casa só para encontrar os seus dois filhos Peggy (Teresa Wright) e Rob (Michael Hall) já crescidos, Fred Darry (Dana Andrews), um tenente da Força Aérea, com dificuldade em conseguir um novo emprego e Homer Parrish (Harold Russell), um marinheiro com a situação mais complicada, porque perdeu ambas as mãos numa explosão, e aprende a lidar com a deficiência através do apoio de Wilma (Cathy O’Donnell), a rapariga por quem está apaixonado. Nesta lógica, atente ao facto de Wyler ter dirigido Mrs. Miniver (1942) – também aclamado pela Academia – sobre o impacto da segunda guerra numa família inglesa e o documentário The Memphis Belle: A Story of a Flying Fortress (1944), sobre o conflito no espaço aéreo alemão. Mesmo assim, enquanto estes tinham um caráter nacionalista e propagandístico, Os Melhores Anos das Nossas Vidas servia de chamada de atenção aos receios de muitos americanos perante a reinserção dos combatentes, como já havia sido tangível por anúncios publicitários e por revistas da época. Tal daria ainda origem às primeiríssimas teses de reinserção implementadas por psiquiatras, militares e sociólogos, com os primeiros estudos sobre o transtorno do stress pós-traumático (PTSD).
De facto, mais do que qualquer outro cineasta, a carreira de William Wyler não pode ser generalizada, na medida em cada um dos seus projetos goza de um estilo particular. Senão vejamos os casos de A Herdeira (1940), um filme de época, Férias em Roma (1953), uma comédia romântica com Audrey Hepburn e Gregory Peck, Ben-Hur (1959), um dos maiores êxitos baseados em referências bíblicas, ou o musical Funny Girl (1969), que valeu o Oscar de Melhor Atriz a Barbra Streisand. Em Os Melhores Anos das Nossas Vidas é notável o quanto o mais alto nível de arte corresponde, efetivamente, ao mais baixo grau de mise-en-scène, quer isto dizer, que o realizador ambiciona ser objetivo, em muito graças à frequente, e admirável utilização do plano-sequência em profundidade de campo, reivindicando um estilo, paradoxalmente sem estilo, como muitos autores apontaram.
Em todo o filme, esta técnica permitiu ao cineasta figurar as cenas sob camadas, sem recorrer despropositadamente à montagem, preferindo investir na complexidade psicológica das suas personagens. Wyler apresenta assim ações contínuas, em diferentes partes do mesmo enquadramento, no qual viabiliza o espetador a escolher entre as diferentes ações, que decorrem em paralelo, e assimilar aquelas que acredita serem relevantes. Noutro nível, não esqueçamos que Wyler imprimiu o filme sob pressão, no local de rodagem, e não no momento posterior da montagem, sendo aí influenciado pelo neorrealismo italiano de Roberto Rossellini e dos filmes Roma, Cidade Aberta e Libertação (este último com um episódio onde os soldados americanos eram também protagonistas). As sequências foram também filmadas, em partes, em exteriores reais, sobre luz natural, com o propósito de romper com a artificialidade atada aos estúdios de Hollywood. Houve ainda recurso a guarda-roupa comprado, em vez de desenhado, em exclusivo, para cada um dos membros do elenco e uma caracterização minimalista, para mostrar pessoas reais com problemas supostamente reais – mais tarde, Os Melhores Anos das Nossas Vidas seria apontado como o fundador do social-problem film, outro género americano com uma série de convenções. É, por isso, notável como um filme produzido por Samuel Goldwyn, o mítico tycoon do cinema americano, consegue já caminhar para o rompimento com certos academismos, particularmente resgatados no cinema independente.
Outro aspeto a destacar é a autenticidade das personagens, que se opera através da escolha de atores não-profissionais, com um desempenho amador de Harold Russell, que é muito mais pertinente do que os protagonistas do filme, já que, também ele, havia perdido as duas mãos ao manejar explosivos. Wyler fez o possível, e o impossível, para que o ator não tivesse aulas de interpretação, conferindo maior veracidade ao seu desempenho. Vale a pena perceber que em nenhum momento Russell se deixa subestimar pela invalidez, uma vez que no decurso do filme mostra aquilo que faz com os seus ganchos. No início e no aeroporto assina o seu nome num documento importante, no avião acede um cigarro, no trabalho de Fred discute com um cliente e puxa o pin da bandeira americana que este tem no casaco, e no seu quarto tira sozinho o aparato. Já os atores célebres como Fredric March e Teresa Wright encontram-se despojados do seu estatuto de estrela. Talvez Hollywood precise de olhar para estas personagens e retomar algum realismo (nos últimos anos Boyhood: Momentos de Uma Vida parece ser o último projeto a apropriar-se desta fórmula), que se tem perdido em detrimento dos desnecessários efeitos CGI.
O ator-personagem é equitativamente hábil em tocar piano numa das cenas que atesta o peso da profundidade de campo. A sequência começa quando Fred chega ao Butch’s Bar para um encontro marcado com Al, onde este apela a que não dê falsas esperanças à sua filha e que termine imediatamente o suposto romance. Quando prestes a sair, Fred dirige-se à cabine telefónica, mas a câmara em vez de segui-lo, mantém-se por detrás de Al. Posteriormente, chega Homer que o convence a vê-lo tocar piano, porém na mudança, a atenção do espetador não é desviada, nem por um segundo, da ansiedade sentida pela personagem de March, ao presumir o que Fred diz a Peggy, que nunca vemos ao perto. De maneira que a cena não se tornasse monótona, Wyler reforçou o seu objetivo com dois grandes planos que enquadram Al e Fred, em simultâneo, mesmo que distanciados. O espetador continua a observar o que se passa em redor das personagens, ao apurar a reação protetora de Al, que perdeu a glória dos anos anteriores à guerra, sucumbindo ao álcool (a sequência termina com Al a pedir a Homer que lhe pague uma bebida), a adaptação de Homer ao seu problema que surpreende os indivíduos ao balcão, e a angústia de Fred por não conseguir seguir em frente com a sua vida. Num nível técnico, o procedimento de plano-sequência em profundidade de campo acarreta uma alteração fundamental, posto que o espetador pode ver a totalidade dos acontecimentos, circulando o olhar pela imagem.
Em suma, com estes elementos William Wyler compôs um filme que está entre o melhor do cinema contemporâneo e, para muitos, entre o melhor de Hollywood, aliás, veja-se como não há nenhum único plano em Os Melhores Anos das Nossas Vidas que Bazin não tenha percepcionado como puro cinema. Por surpresa, os melhores anos do cinema clássico estavam prestes a terminar. São 70 anos de um filme que, afinal de contas, merece a ser tão importante na história da sétima arte.
Ficha técnica
Ano de Produção: 1946/ Título português: Os Melhores Anos das Nossas Vidas/ Título original: The Best Years of Our Lives/ Realizador: William Wyler / Argumento: Writers: Robert E. Sherwood/ Elenco: Myrna Loy, Fredric March, Dana Andrews, Teresa Wright, Virginia Mayo, Cathy O’Donnell, Hoagy Carmichael, Harold Russell e Gladys George/ Música: Hugo Friedhofer/ Duração: 172 minutos