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O rasto da caracoleta

Todas as terras têm os seus ” malucos de estimação “. Aliás, são estas a cor e a alegria que animam os dias tristes. Malucos talvez seja uma palavra forte, mas não ser carneiro como os restantes e mostrar ter carácter um pouco diferente, é sinal de receber logo um belo rótulo.

Recordo-me de uns quantos da minha infância e da forma horrível como os provocava. Estava apenas a ser miúda, bem parva, atacando a pouca dignidade que ainda lhes restava. Na verdade, talvez não se sentissem ofendidos e fosse o seu oposto, era atenção que lhes era dispensada.

As dores de crescimento foram fortes e de tolices e insultos lançados como isco, tudo mudou. Eles ficaram iguais, com os cérebros apertados em falta de discernimento, sorrisos infantis e doces e nós, os que tivemos o banho da realidade, envelhecemos com lentidão.

Eles serão sempre meninos e nada os pode abalar. A vida não lhes deu os alqueires bem aferidos, com o raspar certeiro na parte de topo, se bem que os bafejou com outras artes que lhes colocam alegria, satisfação e empenho em tudo o que faziam.

Um deles, com mil comichões crónicas e regulares, não as perdeu nem as aligeirou. Bastava que se lhe dirigisse a palavra para os danados incómodos voltarem à superfície. Inquirir sobre a saúde era tema vasto que o Mérico sofria de tudo. Meio atoleimado a expressar-se, falava da diabetes com mestria e da insulina como um doutorado.

Aprendeu a cuidar de si e a ouvir os risos dos mais novos. Nada o afetava nem afectou. A vida é linear e enquanto houvesse comida e casa, a rua seria só para passear mesmo que fosse o seu chão. Valeu-lhe o Zé da Tasca, que o tratava como seu. Deu-lhe abrigo e tecto a troco de uns mencionados serviços mínimos. Chamava-lhe pai e viviam os dois muito alegres e contentes.

Injectava a insulina com grande precisão e ainda ajudava nas mesas, mesmo que se esquecesse, amiúde, do que estava a fazer. Fazia boa companhia aos clientes e, sem o saber e falar, era um excelente relações-públicas que ajudava a vender. Tudo se ajusta quando faz sentido.

Outro, nascido com cara de velho, cuidou dos irmãos mais novos como se fossem seus filhos. Viu-os seguir um novo caminho e ele ficou. Os seus tão característicos monossílabos foram teia de segurança para outros. Para ele ficou um corpo de menino e uma cara de tragédia. Não viu? era o grito de guerra e assim foi ficando.

A casa ficou vazia. Ele sabia como a cuidar. Limpava com ardor todas as janelas e sentir-se uma Carochinha que se exibia a todos os que não com ela queriam casar. O Lando parou no tempo e só a barba o veio visitar. O resto não abriu, nem o chamamento natural da atracção. Um dos caprichos estranhos da natureza.

O espírito de entreajuda nunca lhe falhou e os seus irmãos filhos, felizmente, ainda lhe estendiam os braços para o amparar. Na terra, pequena, ficou o nó na garganta. E se lhe falharem? Quem manda nestas coisas, que lhe conhece as dependências, pensou e deu-lhe uma solução.

O Lando passou a sair de casa e levar às outras casas o que era preciso. Não deixava nada por fazer nem misturava cabazes nem encomendas. Era o faz tudo e encantava as velhinhas que, por pena e carinho, lhe faziam festas na cabeça como se ele fosse um menino.

O outro, pobre rapaz que tinha os parafusos todos desapertados e os faróis desalinhados, era mais expedito. Percebia tudo, mas o Torette ainda não era conhecido. Sem filtros, voavam os palavrões mais pesados e livres, em todas as direcções que acertavam nos incautos.

A princípio era uma delícia repetir o que o Toloy dizia, mas, com o passar do tempo, a vergonha ganhava terreno e fazia corar. Fui a que mais o abraçou e que acalmou os seus temores. As pilosidades eram suas amigas e ele tinha tantos pelos que a barba e o peito faziam uma espécie de carpete.

Inteligente q.b. começou a sofrer quando viu que o corpo não lhe obedecia. A adolescência percorrida em passo de caracoleta, deixou marcas profundas e dolorosas. Nunca houve lugar a aceitação, apenas se conformou com o pouco que conseguia.

Sugeri que tivesse uma actividade e descobriu que gostava de vender. Tudo o que não fazia falta nas nossas casas, passou para o carro improvisado do Toloy que, à velocidade que lhe apetecia, ia percorrendo todos os espaços que lhe eram conhecidos. Revistas muito antigas, bugigangas, canetas sem préstimo, lápis de propaganda e doces, tudo. Ui, a desbunda total.

Aqui é que os ânimos se exaltaram. Naquela época havia uma espécie de goma que tinha propriedades mágicas, esticava. Os esticas faziam as delícias dos mais novos e de outros também. A maldade nunca abandona o ser humano e quando lhe perguntavam se a dele também esticava, tínhamos o caldo entornado.

O Tourette voltava à flor da pele e a raiva era tão forte que se emaranhava em todos os que o rodeavam. Os seus gritos voavam no espaço e ninguém o calava. Depois abria a braguilha e mostrava o órgão para não restarem dúvidas. Havia quem batesse palmas e havia quem se insurgisse com essa atitude.

Guardo-os no meu coração com um amor muito especial! Não havia ódio nem rancor nas suas vidas e tinham o dom do perdão. Fui tão má com todos eles, típico da tenra e estúpida idade, mas afinal acabei por ser a amiga até ao fim. Ainda hoje choro as suas partidas.

O Toloy morreu atropelado numa avenida muito movimentada. Dizem que se atirou contra o carro. Não sei se foi assim. Só sei que me faz muita falta e o meu coração ainda sangra de saudade. Penso que naquele dia teve uma luz que lhe disse que devia ir em frente. Ou talvez não.

O Mérico nunca parou de se coçar nem de rir e a pele pregou-lhe uma valente partida. Cancro. Encontrou-o a dormir e pegou-o ao colo. O Zé da Tasca ainda o chora. Era o seu menino, a sua única companhia e o seu conforto. As suas palestras sobre a diabetes ficaram bem aprendidas. É mais um anjo que me aparece nos sonhos.

Resta o Lando, que me abraça sempre que me vê. Muito velhote, com o seu corpo de menino de oito anos e barba rala de puberdade, faz parte da alegria de regressar à infância e saber que a vida vale sempre a pena. Está sempre muito bem disposto e preocupado com todos.

Interrogo-me se a vida teria o mesmo calor ou sabor se não os tivesse tido na minha caminhada. Sem o menor esforço, ajudaram-me a crescer, a ver como a maldade pode distorcer a verdade. E tive o melhor de todos os ensinamentos, o terno e puro amor que me ofereceram sem nada pedir em troca.

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