
então vi-o.
debaixo do banco do jardim, perscrutando o mundo ruim, aquela vida de frenesim. as palmas das mãos nos ouvidos a tapar, a cabeça entre as pernas a segurar, os monstros outra vez a pairar, o corpo a balançar na tentativa de os expulsar. olhava em seu redor, com expressão de pavor, a vida a acontecer sem a conseguir compreender. viu pessoas para cá, pessoas para lá. viu a noite a fugir e o dia a surgir. respirou fundo, ganhou forças para partir. longe daquele lugarejo procuraria um lampejo. sem injustiças nem areias movediças, quem sabe em terras fronteiriças.
tinham nomes mais feios do que uma sarjeta: Laureta, Henriqueta e Antonieta. dava a cara com a careta. as beatas da igreja, talvez por mexerico ou medo da rumoreja, queriam-lhe mais mal do que alguém deseja, queimá-lo no inferno, salvo seja. maldito!, que carregas o diabo, vou chamar o padre Azevedo, nem é tarde nem é cedo. era a magricela da beata, metediça, a provocar a desigualdade da liça. vezes sem conta castigado sem rectidão, a toque de cinturão – a bem da purificação, apregoava o padre, cabrão.
as palmas das mãos nos ouvidos a tapar, a cabeça entre as pernas a segurar, os monstros outra vez a pairar, o corpo a balançar na tentativa de os expulsar.
numa fortuita espreitadela, o rapaz viu a blasfémia da janela. foi atrás da capela: a filha da beata magricela, cadela, dava-lhe uma chupadela. entre uma oração e uma confissão, o padre, cabrão, cantou-lhe uma cantiga, deixou-a de barriga, dali a uns meses rapaz ou rapariga.
o pobre rapaz inocente, fraca figura de gente, só porque era diferente, ficou ardilosamente enleado num caso mal contado. engendrou-se uma balela para salvar a honra da donzela. livraram-se todos: o padre, a cadela e a beata magricela. o falatório sem freio, mais depressa do que um correio, incriminou o rapaz no enleio, esse bicho feio. a moça, desditosa, abusada e chorosa, teria agora uma vida nebulosa à conta de uma acção escandalosa, por culpa de um rapaz de enfermidade perniciosa. a população gritou raivosa: com o respeito e a moral não se troça. vamos vingar a moça, dar-lhe-emos uma coça.
o rapaz, pobre coitado, angustiado e assustado, tinha a cabeça a prémio, era procurado. o destino parecia traçado desde que naquele lugarejo fora largado, numa sacola tapado, desmamado e mal tratado: nunca seria desejado, respeitado ou ajudado. seria sempre um mal-amado, alguém com mau olhado, ou, como se ouvia pelas ruas: um atrasado.
as palmas das mãos nos ouvidos a tapar, a cabeça entre as pernas a segurar, os monstros outra vez a pairar, o corpo a balançar na tentativa de os expulsar.
clandestino no jardim, a ansiedade crescia enquanto ele não partia. a fugir da chacina, arriscou uma manobra assassina: vislumbrou uma nesga, dobrou pela esquina, em direcção à ravina, tentando fintar a sina. escapou na surdina. apanhou boleia, numa carroça alheia, só parou noutra aldeia.
mas eu vi-o. e o lugarejo num corrupio. não dei sinal. nem um pio.