A música portuguesa está de boa saúde e recomenda-se!
No sábado à noite, dia 24 de Fevereiro, voltei ao tempo em que a música tinha um valor maior e que fazia sempre todo o sentido. Não quero com isto dizer que ela não faça falta, porque é essencial para a alma, mas regressei a um tempo em que a idade e a liberdade permitiam que tudo fosse relativo e fácil.
Os Xutos e Pontapés são conhecidos do grande público, mas existem outras bandas que precisam de ser divulgadas e muito acarinhadas. Podem não ter chegado ao topo geral, mas na nossa zona, no porto seguro do lugar onde vivemos, elas nunca deixaram de fazer parte do nosso caminho. São a nossa voz e o nosso som.
Nomes como UHF, Grupo de Baile, Censurados e Nuno Norte dizem-vos alguma coisa? Claro que sim! Não andam a dormir! Então vamos ao que importa: Alcoolémia. Para mim serão sempre os Back Street Boys da minha zona. Não que a sua música seja igual, que não tem nada, mas mesmo nada a ver, mas porque era nas traseiras do meu prédio que se juntavam e discutiam a sua vida.
Fui-os acompanhando durante algum tempo e chegaram a ter alguns êxitos bem divulgados e passados na televisão e rádio. Depois caíram no esquecimento e a própria banda sofreu algumas remodelações. Não posso dizer que não os continuei a ver, porque até somos vizinhos, mas penitencio-me, porque os deixei de ouvir. Fiz mal. Vou sempre a tempo de emendar o erro cometido.
No sábado, levei uma chapada com toda a força! Que grande noite, que espectáculo fantástico e grandioso. Penso que fechei os olhos e viajei até aquele tempo que não volta mais, mas que soube muito bem. Ouvi as letras e reconheço que são muito boas. Eram os gritos de uma geração que crescia e enfrentava os seus receios. Foi, de facto, uma noite bem diferente.
Uma sala cheia, com pessoas encostadas à parede e outras sentadas nos degraus. Talvez o espaço fosse pequeno para os acolher. Eu senti-me parte do todo e vibrei a sério. Uma tão peculiar e eclética plateia merece toda a referência. isto porquê? Os nossos meninos cresceram e são pais de família. Além dos amigos, que nunca os abandonaram, os pais, os pilares de sempre, também estavam presentes. Quem se pode orgulhar destes apoios?
Na verdade, eu sou uma “avó” que se sentou ao lado de outra. O que vi foi algo de fantástico: avós, filhos e netos a partilharem uma extraordinária vivência e a cantarem, a uma só voz, as músicas que fazem todo o sentido. Escritas num determinado momento e vividas para sempre. Li-as todas e admito que são diferentes. Têm aquilo a que se chama substância e dá muito que pensar.
A aposta neste vocalista, João Beato, faz todo o sentido. Uma voz clara e límpida, encostadinha ao timbre do Eddie Vedder, leva-nos a prados longínquos cheios de cor e luz. Um passado que une todos e é entendido sem delongas. Uma voz sólida e profunda, com fonética correcta e perfeita. Tudo cantado num bom português que não largou uma única fífia. Um sustenido que chegou a um grande bemol.
O Manelito Soares, intemporal, como assim foi apresentado e muito bem, numa actuação técnica perfeita, numa clara posição de anti vedetismo que só lhe fica bem. Podia exigir esse estatuto. Estava no seu direito. É membro fundador e podia querer ser tratado por presidente da junta, mas é somente ele próprio. Os anos não passam por ele. O que interessa é que continue a desempenhar a sua tão grande tarefa.
O grupo passa a imagem de entendimento e união. Nada falhou e seria natural que assim acontecesse. Houve tempo para referir um músico que já partiu e que deixou um pedaçinho em todos nós, o Zé Pedro. Já passaram três meses, mas está no patamar da eternidade e a sua música nunca está esquecida. Os outros seguem que era assim que ele gostaria que acontecesse.
Qual é o grupo que não gosta de ter convidados especiais? As prendas foram com os grandes e as suas músicas voltaram a ser tocadas como se assim fossem os adolescentes que entravam na aventura nova. O António Manuel Ribeiro, dos UHF, sempre impecável, cantou “Cavalos de Corrida”, letra que foi escrita em 1980, na Torre da Marinha. Uma preciosidade!
Carlos Manuel Tavares, o inesquecível vocalista do mais que conhecido Grupo de Baile, cantou, dançou e encantou com a sua energia inesgotável. A idade é um número que nem todos conseguem entender. E, de repente, voltámos à escola secundária e ao famoso perfume “Patchouli”, ao cheiro que espalhava e ao grupo que juntava. Acho que ainda tenho, algures, um frasco com esse odor.
Nada a apontar a nenhum dos músicos. Um deles até tem a ingrata tarefa de ensinar meninos (ingrata no sentido de não ser nada fácil) e no Carnaval juntou os alunos para uma homenagem a uma banda de sempre: Os Xutos e Pontapés. Não sei se foi coadjuvado ou coadjuvante, mas o certo é que resultou na perfeição. Boa iniciativa. Destas é que precisamos. Música portuguesa sempre.
O problema dos bateristas é que ficam muito escondidos, apesar do barulho que conseguem fazer. Tem o nome de som e chegou nas condições possíveis. Como disse a sala era pequena. Precisavam de mais espaço. Mereciam. Não me esqueci do baixista que esteve sempre impecável. Não lhes consigo encontrar um ponto de ferrugem para pegar. Tudo bem oxigenado. Profissionais.
Nuno Norte e a sua voz rouca deu o toque especial com a sua interpretação peculiar de alguns temas. A guitarra de António Corte Real não ficou esquecida nem a do Cohen. Uns crescem e outros ficam maduros. É um ponto de vista. Chama-se vida e é para ser aproveitada. Várias gerações que se entrosaram e resultaram em algo com um acabamento final com toque de grande qualidade.
Para apontamento final deixei, propositadamente, os mais novos. Esses serão a continuidade, os herdeiros do rock, os que sabem o que a música é porque lhes está no sangue. Gravaram os pais, os tios, os amigos e estiveram sempre atentos. Cabe a eles receber os dons com toda a naturalidade. Com as mãos no ar, cantavam os refrões e dançavam. Uns sentados e outros, respondendo aos impulsos, mais elas, bem levantadas e soltas, dançavam livremente.
Resta-me desejar-lhes muitos sucessos e uma longa vida, porque merecem. As nossas rádios deviam passar mais música nacional, divulgar as bandas portuguesas e fazer-lhe justiça. E não se deviam limitar aos temas mais conhecidos. Passem os outros, porque a vida não é só viver, é também sonhar e realizar o que tanto se deseja.
Os Alcoolémia continuam a ser uma excelente referência da Margem Sul, aquela que é cheia de charme e que tão bem se desenvolveu contrariamente às expectativas dos mais velhos do Restelo. Oiçam, cantem, sonhem e nunca percam a lado infantil que persiste em habitar num lugar bem recôndido da nossa alma. Aquele que não devemos largar, mas sim regressar quando é preciso.
Muito obrigado por uma noite diferente e tão repleta de momentos fantásticos. Voltei a ver tantas pessoas de quem não sabia há anos. Só estão um pouco mais maduras, com vidas cheias de compromissos e horários a serem cumpridos. Parece que se dá o nome de crescer. De resto as carinhas larocas de adolescentes não se alteraram. Bem, na verdade alguns deixaram de usar cabelo, mas isso não tem importância nenhuma. Ficam bem mais leves.