Lembram-se daquele sketch dos Gato Fedorento em que duas velhotas se digladiavam para decidir qual das duas era mais enferma? “Ai eu tenho aqui uma artrose”, ao que a outra respondia “Mas eu tenho aqui uma úlcera”, e continuavam em intermináveis argumentos até que as doenças se extinguissem do manual médico ou até que a acumulação provocasse a morte de uma delas, senão das duas. Pois, meus amigos, isso não é próprio das velhas, é próprio de estados de alma perfeitamente democráticos e extensíveis a todas as idades. Arrisco mesmo dizer que tem muito mais a ver com a forma de ser do que com a idade.
Faz-me espécie (adoro esta expressão, que contudo é tão sem sentido, que espécie é que fazemos nós?!) que as gentes se queixem sem demais. Sabem aquele tipo de pessoas que se queixa de tudo, do marido, da mulher, dos filhos, dos pais, dos sogros, do trabalho, do patrão, do cão, do gato, do periquito, do vizinho de cima e do debaixo, do trânsito, da chuva, do sol e do calor? Acredito que conheçam, que eles “andem aí”. E se tentamos, num dia de muito boa vontade, ter algum tipo de conversa com essa pessoa, acabamos deprimidos, se acreditarmos de facto em tudo o que diz, que vida desgraçada tem a criatura, ou então perfeitamente esgotados por tentarmos sugerir algo que a anime ou que a ajude a resolver o grande drama existencial, que se espraia por todas as áreas da sua vida. Mas nada parece favorecer ou dar alguma luz de esperança a essa pessoa, que ela reage, como ouvi algures, a “arranjar um problema para cada solução”.
No outro dia, encontrei uma pessoa que não via há uns anos. Na altura falava em editar um livro, mas já então era um desejo-ilha, rodeado de águas agrestes por todos os lados. Anos volvidos, em que ponto estamos? Na mesma. Entregou o livro em alguma editora? Não. Criou uma página de divulgação da sua escrita? Não. Fez algum curso, apurou-se na técnica? Não. Afundou-se no drama, sem demais. Cultiva o degredo, sem lutas. Mas queixa-se. Muito. Que não há oportunidades, que é preciso contactos, que não sabe por onde começar. Não é que os argumentos sejam totalmente falsos, mas precisamente por existirem é que é necessária uma veia mais combativa e resiliente. Acredito que daqui a 5 anos, se nos voltarmos a ver, ainda estará a olhar paralelamente o infinito, porque perpendicularmente dá muito trabalho.
Outra pessoa queixava-se do marido. Que não lhe ligava, que a desprezava, que a deixava para trás por qualquer carro que passasse, comprometendo frequentemente o orçamento familiar. Dois anos volvidos, o queixume continua intacto, sendo que o carro já é outro. Imagino-a chorosa, a acenar ao marido que sai para passear no domingo à tarde com a sua nova viatura, acariciando a pele dos bancos com carinho, ficando ela a vê-lo partir até desaparecer de cabelo ao vento no fim da rua, voltando, eventualmente, quando a gasolina terminar. Prioridades…
Outro queixava-se que o filho não fazia nada em casa, que se deitava tarde, mas pela manhã, para o menino não se atrasar, fazia-lhe a cama e punha-lhe a roupa do dia na cadeira, para que ele não perdesse tempo a escolhê-la. Daqui a 5 anos, tudo permanecerá igual, excepto as roupas que, com certeza, serão maiores. Contribui, portanto, para o reforço daquilo de que se queixa tão sonoramente. Coopera activamente com o statu quo.
Outro ainda queixava-se do emprego, dos colegas, do horário, do patrão. Enviou currículos para outros locais? Não. Procurou resolver a sua situação internamente? Não. Mudou de actividade? Não. Acomodou-se.
A decisão de se acomodar é uma possibilidade, mas pressupõe aceitação, não lamento contínuo. Porque este discurso, passivo e choroso, é completamente ineficaz e muitas vezes maçador. É inevitável que, mais dia menos dia, alguém lhes pergunte: e o que fizeste para mudar isso? Emitem um som roufenho (humpft...) e imperceptível, acabrunham e somam ao extenso rol das queixas mais um: ninguém me compreende.
Então, de que se queixam? Todos nos queixamos, uma vez ou outra. Mas existe uma grande diferença entre estarmos queixosos, temporariamente, num desabafo, ou sermos queixosos, numa característica permanente e sem fim ou sem capacidade resolutiva à vista. Mas a questão de que falo hoje é: quantas tentativas falhadas são precisas para termos o direito a lamentarmo-nos por não termos conseguido? Isto pressupondo que tentámos, claro. Porque não me parece fazer sentido que nos queixemos sem nada termos feito para resolver a situação, uma, duas, três, as vezes que forem precisas, proporcionalmente ao interesse que temos em resolver o problema. Ou então aceitamos e calamos o lamento.
Ocorre-me que esta abordagem, que classifico como autossabotagem, pode ser apenas uma extrema dificuldade em pensar no que se seguirá. Enquanto se mantiverem a rodar na rotunda, sem optar activamente por uma saída, adiam a necessidade de agir. Um pouco como aquela máxima: plantar uma árvore, ter um filho, escrever um livro. E depois disto não acontece mais nada? Ou estamos, alcançando o objectivo, disponibilizando-nos para morrer, já que não temos mais em que pensar? E outras árvores? E outros filhos? E outros livros? Novos sonhos?
Claro que nem toda a gente tem a mesma resiliência. Claro que nem todos têm a perseverança e sangue na guelra. Ou fé no futuro, ou capacidade de acreditar que podemos mudar, ainda que parcialmente, a nossa vida, que podemos ser autores dela e não meras personagens de um escritor prepotente. Recordo um autor, que não revelo por ser indelicado, que só na 36.ª editora conseguiu uma resposta positiva. E se tivesse parado na 1.ª? Ou na 10.ª? Este é um exemplo extremo, parece-me de uma coragem hercúlea, mas talvez fosse aceitável um meio-termo, longe da nulidade de reacção de muita gente. Gente essa, que, maioritariamente, preenche os grupos de queixosos. E ao que parece, com extremo orgulho de sofredor autopunitivo, na boa herança judaico-cristã. Um pouco na lógica do fica por conta dos meus pecados, como crédito a abater a uma vida de erros (por omissão, calculo).
Talvez a pessoa não se sinta forte o suficiente para lutar por si própria, ou talvez o desejo teórico, platónico, não seja assim tão intenso, que a faça levantar-se da cadeira da preguicite para tentar realizá-lo. Ou o incómodo não seja assim tão forte. Vai-se levando, sem nada fazer, esperando pelo príncipe encantado que não chega, para resolver, ou optando pela alienação da realidade, ou gerando desculpas e justificativas sem qualquer nexo ou razão.
Ou então, e este é para mim o pior dos cenários, talvez não tenham nada de seu, nada do que falar, se lhe tirarmos o tom melodramático. Se lhe retirarmos do vocabulário as desgraças, as limitações, os contratempos, as perseguições, os pretensos inimigos e os invejosos (de quê?), se lhe tirarmos a hipótese de apelar à piedade alheia, que estranhamente os consola, e que devem achar impregnada de charme, o que lhes restará? Tristeza, muita.
Não encontro defeitos. Encontro soluções. Qualquer um sabe queixar-se.
– Henry Ford